O Lado Sombrio de Alice

Assistir (1998) a Alice nos faz pensar em como o cinema transforma obras densas e sombrias em histórias da carochinha com lições de moral

03/04/2017 23:14 Por Bianca Zasso
O Lado Sombrio de Alice

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Uma breve estudada sobre a origem dos contos de fada basta para se descobrir que, em suas raízes, as histórias que hoje fazem parte do cotidiano de muitas crianças eram repletas de morte, tortura e abusos. Que os estúdios Disney colaboraram para esta espécie de higienização dos originais, não há dúvida. Tanto que até um clássico da literatura cheio de camadas e nem um pouco infantil, Alice no país das maravilhas, tornou-se uma animação colorida e levemente psicodélica. Quem já leu o livro mais de uma vez sabe que há mistérios nas páginas escritas por Lewis Carroll que talvez só a maturidade nos revele. Mas um diretor tcheco deu uma boa ajuda para nossa interpretação no final dos anos 80. Jan Svankmajer que já havia marcado a história do cinema de animação com seus curtas surrealistas, como o fantástico Dimensões do diálogo, levou as aventuras vividas pela pequena Alice para um cenário onde não é recomendado a entrada de menores.

Alice, lançado em 1988, mistura a técnica stop-motion e live-action a serviço da criatividade. O livro de Carroll é uma base, não uma regra fixa. As dezenas de portas abertas pela protagonista para seguir o coelho branco eternamente atrasado é quase uma desculpa para Svankmajer deixar fluir sua capacidade de fazer de objetos do cotidiano personagens complexos. Meias, latas de sardinha e até um pedaço de carne crua tornam-se monstros. E são os movimentos intermitentes destas “coisas” que fazem o encanto de Alice, aliados a uma direção de arte sublime. Os ambientes percorridos pela menina são sujos, com portas lascadas e janelas quebradas. O país das maravilhas não tem nada de encantador e os olhos expressivos da pequena atriz Kristýna Kohoutová expressam medo e curiosidade a cada porta aberta, a cada gaveta fechada. Svankmajer retrata algo muito mais próximo das fantasias de infância do que qualquer outro filme já foi capaz. Afinal, todos sabemos que ser pequeno num mundo onde ser grande é sinônimo de poder não rende sonhos com carneirinhos e dias ensolarados.

Assistir a Alice nos faz pensar em como o cinema, em especial o que pensa mais em bilheteria que discussão, transforma obras densas e sombrias em histórias da carochinha com lições de moral. A mania de proteção faz com que alguns pais e até professores busquem fugir de temas como a morte e o medo, criando uma redoma em volta das crianças. Sabemos que inocência é algo que não faz parte do universo infantil. Os pequenos nos testam, são cheios de artimanha e aprendem rápido, para o bem e para o mal. Aos adultos que endeusam a adaptação carnavalesca de Tim Burton, o recado é um só: a história de Alice toca em nossas feridas. E gente grande precisa encarar as suas de frente. Dói, mas ninguém disse que viver seria prazeroso.

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Sobre o Colunista:

Bianca Zasso

Bianca Zasso

Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.

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