Os Aventureiros da Narrativa
Geoffrey Chaucer é considerado o primeiro grande nome da literatura inglesa. É um pouco um produto da Idade Média europeia
Geoffrey Chaucer é considerado o primeiro grande nome da literatura inglesa. É um pouco um produto da Idade Média europeia. Escreveu seus textos no que se convencionou chamar o inglês médio, onde a língua inglesa se desprendia um pouco de seu soturno anglo-saxônico e se latinizava um tanto, graças especialmente à influência francesa que deliciava a Chaucer. O ponto alto da literatura de Chaucer é Os contos de Canterbury (The Canterbury tales; 1386), em que o narrador central, no comecinho do texto, reúne um grupo de peregrinos que se dirigem a Canterbury e os faz relatar algumas evocações de viagens, produzindo os tais contos que vemos no livro.
“Naquela época, aconteceu que um dia, achando-me eu em Southwark, no Tabardo, pronto a partir em peregrinação a Canterbury com o coração cheio de fé, chegou de tardezinha àquela hospedaria uma comitiva de bem vinte e nove pessoas diferentes, que haviam se reunido por acaso.” Paulo Vizioli, o tradutor, transpõe o texto de Chaucer para um português clássico, castiço, diríamos até camoniano. A impressão do leitor em inglês é um pouco diversa. Com a edição bilíngue o leitor brasileiro pode aquilatar. É como se os leitores da língua portuguesa se debruçassem hoje sobre um texto medieval em português, pré-camoniano: grafias e sintaxes são diferentes, uma certa instabilidade estrutural, tornando a legibilidade, dentro do inglês moderno, mais trabalhosa. Vale ler Vizioli e deitar os olhos sobre Chaucer. É um exercício prazeroso.
A influência é enorme em várias latitudes. Um bom exemplo é o francês Restif de la Bretonne, que no início de A descoberta austral (1781) emula o princípio narrativo de Os contos de Canterbury. “No mês de novembro de 1776, eu tomei a diligência de Lyon, para retornar a Paris. Éramos oito na carruagem, um beneditino, um comediante, duas atrizes, um advogado, um negociante, um Eu-não-sei-quem, e eu; sem contar um macaco, três papagaios, dois periquitos, um Angola e os indivíduos humanos da guarda imperial.” Caracterizando cada uma das personagens, De la Bretonne as põe a contar seus casos. Em seu prólogo Chaucer disseca um pouco suas criaturas, mas é na extensão dos contos que sua antropologia narrativa se exercita. Embora em escala menos épica e imponente, é de reconhecer a referência meio brumosa que La Bretonne faz a seu mestre longínquo.
Há vários trechos maravilhosos nesta enciclopédia de narrar que é Os contos de Canterbury. Pode-se selecionar a esmo um: “Aos amantes apresento esta questão: quem o mais ditoso, Arcite ou Palamon? Este avistava a amada todo dia, mas não podia abandonar o cárcere; aquele tinha toda a liberdade, mas nunca mais veria o seu amor. Julgai como quiserdes, porque agora vou prosseguir com minha narrativa.” Num pedaço de episódio, uma frase-ensaio, quase um Platão, quase um Montaigne: amar sem tocar, amar sem ver. E para se desfrutar do original arcaico de Chaucer: “You loveres axe I now this questioun / Who hath the worse, Arcite or Palamoun? / That oon may seen his lady day by day, / But in prison he moot dwelle alway. / That other wher him list may ryde or go, / But seen his lady shal he never-mo./ Now demeth as yow liste, ye that can, / For I wol telle forth as I bigan.”
A tradução, sabe-se, é sempre uma aproximação. Ainda mais quando estamos diante dum texto em língua estrangeira tão antiga. Um exemplo: Chaucer usa o vocábulo “queynte” para designar a genitália feminina. Este termo se perdeu no tempo. Ao que parece, quase não há registros dele na literatura. Era um termo corrente ou um chaucerismo? Segundo estudiosos, a palavra nada tinha de obsceno na pena de Chaucer. Mas Vizioli optou por traduzir “queynte” por “boceta”. Sabemos todos: no português de hoje “boceta” (se diz “buceta”) é chulismo. Como achar o correspondente para “queynte”? Vizioli não se preocupou com isto, dadas as dificuldades da questão: os circunlóquios adjacentes à palavra conferiam talvez o refinamento pretendido por Chaucer e capturado a duras penas pelo tradutor.
Em qualquer modo, encontrar Canterbury e seus contadores medievais é algo exitoso para o leitor brasileiro. Parente das mil e uma noites e do italiano Giovanni Boccaccio, que o precederam, Chaucer, como ele próprio, é um dos atores que encenam os contos; não era propriamente preciso, pois seu texto onisciente é uma criatura viva, mas sabem como é, o artista é um narcisista intrínseco.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br