O Tempo Fora da Narrativa
Existe em certos achados de romancistas ou poetas um tempo que não pertence à narrativa
Existe em certos achados de romancistas ou poetas um tempo que não pertence à narrativa ou às sensações do poema mas é fundamental nos efeitos que faz brotar no que se está narrando. Um tempo extradiegético: como uma música fora de cena que na banda sonora ilumina certas sequências de um filme.
Comecemos pela poetisa norte-americana Emily Dickinson. Num de seus versos, ela anota: “Soul, wilt thou toss again?”. Quer dizer: “Alma, lançarás novamente?” Um pequeno verso, escrito na simplicidade de seus arcaísmos, expondo tanta coisa em tão pouco espaço. Uma apóstrofe em que a criatura se dirige à invisível, intocável Alma. Um auxiliar do futuro (“wilt”) e um pronome pessoal da segunda pessoa do singular (“thou”) caídos em desuso na língua inglesa. Mas acima de tudo aquele advérbio: “again”, de novo, outra vez. Um verbo, “toss”, lançar, atirar, jogar, que não diz o que a Alma deverá jogar. De novo. “Again” pressupõe que houve uma vez anterior. Quando? Parece não interessar ao poeta? não interessar à narrativa. O tempo dividido: diegético e extradiegético.
Depois temos o ficcionista francês Marcel Proust. A primeira frase de sua longa divagação temporal que é À la recherche du temps perdu (1922) é: “Longtemps, je me suis couché de bonne heure.” (“Durante muito tempo, eu me deitei cedinho.”). Que tempo é definido pelo advérbio “longtemps”? Ele se perde em sua continuidade, anterior ao narrado, pois o narrador substitui o esperado imperfeito (“je me couchais”) pelo passado composto (“je me suis couché”). Que vê o leitor? O narrador deitando-se cedo num momento preciso. As vezes anteriores a este momento preciso não estão na cena. É, outra vez, um tempo extradiegético; mas que atua fortemente sobre a diegese.
Finalmente, chegamos ao escritor colombiano Gabriel García Márquez e à oração inicial da fábula que é Cien años de soledad (1967): “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo.” (“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou a conhecer o gelo.”). De novo uma expressão imprecisa de tempo, “muitos anos depois”, para agir sobre instantes precisos, o pai levando o filho a conhecer o gelo, o homem diante da morte por fuzilamento. Quando se dá este tempo antes do “después”? Quando e quantas vezes é o “longtemps” de Proust? Qual foi a vez, quantas foram as vezes em que a Alma lançou antes do “again” de Emily Dickinson?
São estas sutilezas temporais que definem o momento de gênio dum escritor.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br