O Que Se Espera do Cinema

Passados os anos, as reposições dos clássicos de Fellini topam a frieza que o público habitual dedica a um museu, no pior sentido. Mas não é bem assim...

04/02/2017 21:16 Por Eron Duarte Fagundes
O Que Se Espera do Cinema

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Em sua época cada lançamento de um filme do italiano Federico Fellini era um espetáculo tão importante quanto o espetáculo que se via na tela, o filme propriamente. Passados os anos, as reposições de seus clássicos cinematográficos topam a frieza que o público habitual dedica a um museu, no pior sentido, aquele de coisa mofada e com várias partes estragadas, como um bolo esquecido fora da geladeira. Para o espectador cativo que ainda é apaixonado pela estridente criatividade de Oito e meio (Federico Fellini’s 8 ½; 1963), isto choca. Há alguma coisa de errado, do ponto de vista moderno, com esta obra-prima de Fellini? Na verdade, trata-se duma narrativa para lá de avançada, uma espécie de diário em imagens das inquietações artísticas e humanas dum intelectual (no caso, um diretor de cinema, claro) da segunda metade do século XX; Guido Anselmi, a personagem do cineasta que é também um porta-voz do próprio Fellini, está às voltas com suas crises, perdido entre seus impasses  atuais e suas memórias, e Fellini cria cinematograficamente este universo particular de sua criatura exibindo uma extravagância visual e colando os delírios uns nos outros como excertos de um grande vômito próximo do experimental —mas sem chegar a extremar a forma de filmar, como no franco-suíço Jean-Luc Godard, o que torna os filmes de Fellini mais comerciais, mais ligados à natureza do espetáculo fílmico —ou teria este senso fílmico tão louvado no passado envelhecido, como se pode supor por algumas reações geladas a Oito e meio na plateia de hoje?

Vou fazer uma comparação com uma arte de que gosto muito, gosto desta arte que vou citar mais do que do cinema. É a literatura. O francês Marcel Proust é posto mui justamente no pedestal, há praticamente um século. Será que nada em Proust envelheceu e a maneira como o homem de agora o lê tem alguma relação com a forma de leitura do início do século XX? Não se fazem a Proust as reservas que alguns fazem a Fellini. Penso que a razão está em que o cinema é visto pelo grande número, é uma arte de massa: este espectador mais carnalmente contemporâneo que o leitor de Proust faz envelhecer mais facilmente uma obra de arte. O espectador de hoje naturalmente se perde nos liames de Oito e meio e sua incompreensão esvazia a relação filme-espectador. Não é o que acontece com a literatura de Proust, pois seu público é bem diferente. Este grande romancista francês não apresenta grandes dificuldades de compreensão aparente de seu texto, mas a complexidade vem da estrutura de conjunto de sua obra, duma leitura continuada. Quem lê Proust hoje em dia? Não é o mesmo espectador habitual de cinema, aquele que por acaso vai ver Oito e meio. O leitor de Proust é alguém mais disposto para com certas coisas que se dispersaram ao longo das décadas: toda sua elegância e seu refinamento podem ter perdido o sentido na explosão de vulgaridade que vivemos, mas seus achados, agora como ontem, encantam o mesmo tipo de gente, os interessados em literatura, coisa simples mas também complexa —quem são estes?

Com Oito e meio algo parecido. Os que curtem o autêntico cinema não deixarão de perturbar-se com a tagarelice visual de Fellini em sua busca do silêncio final. Fellini, ao contrário de seu patrício Michelangelo Antonioni, não consegue ficar quieto, não filma os silêncios e os ruídos murmurantes da cena, suas criaturas estão sempre falando ou dançando ou alçando voos esquisitos como alguém que no início se desprende dum carro trancado num engarrafamento e ganha estranhamente os céus. Mas todo o barulho felliniano serve, em Oito e meio, a retratar uma certa esterilidade: como diz em gargalhada uma jornalista para a câmara durante uma caminhada-entrevista em que Guido é bombardeado pela imprensa com diversos questionamentos, “ele está perdido, ele não sabe mais o que dizer.” O filme que Guido queria fazer não sai, os cenários são destruídos e chegamos ao silêncio que Fellini não filma —quando bate o silêncio, acaba o filme, o resto é com Antonioni. Teria isto perdido o sentido para os barulhentos de hoje? No entanto, a proposição de Fellini —o cinema como uma grande festa, mesmo que sob uma função intelectual como sempre foi seu cinema— continua ativa para quem tiver no olhar a autêntica generosidade de ver o filmado.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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