Os Pretos e a Conquista da Civilização

Não sei se Patrick Chamoiseau é o maior escritor negro da atualidade. O que sei, pela leitura de Texaco (1992), ganhador do Prêmio Goncourt, é que ele é um romancista extraordinário

22/02/2017 21:58 Por Eron Duarte Fagundes
Os Pretos e a Conquista da Civilização

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Não sei se Patrick Chamoiseau é o maior escritor negro da atualidade. O que sei, pela leitura de Texaco (1992), ganhador do Prêmio Goncourt, é que ele é um romancista extraordinário: tão inventivo em suas imagens de linguagem quando nas novas estruturas narrativas que vai propondo quase indelevelmente. O que sei também é que ele é um dos mais influentes artistas negros de nossos dias, porque sua arte se esforça por revelar o que está na história das transformações geracionais da raça negra a partir do povo negro da Martinica, durante muito tempo uma espécie de departamento francês. Chamoiseau esteve em 2016 em Porto Alegre para o Fronteiras do Pensamento e, segundo expôs ao jornalista e escritor gaúcho Juremir Machado da Silva, buscava elementos para alargar sua tese da criolidade. Tese que ele já expusera em seu ensaio Elogio da criolidade (1989).

Chamoiseau nasceu em Fort-de-France, na Martinica, em 3 de dezembro de 1953. Texaco, seu livro mais conhecido, é um romance que se passa na Martinica ao longo dos séculos, acompanhando a saga negra desde a escravidão, passando pelo processo migratório que levou à produção de mestiços (os bekés, como os chamam por lá) e à criação de cidades (não la ville, como no francês citadino, mas, em crioulo, “l’En-ville”, o que é um conceito diverso, parageográfico, com um projeto etnográfico mais sutil e complexo) e finalmente chegando aos tempos de agora em que Marie-Sophie Laborieux, uma sofrida descendente da negritude ancestral, fornece os depoimentos e os cadernos para que Chamoiseau (cujo sobrenome, no texto final, ela decompõe para um vocativo amical, “Oiseau de Cham”, pássaro de Cham) exerça sua notável arte de produzir a voz do povo que o gerou.

Texaco é um bairro primitivo duma cidade primitiva; recebeu este nome graças à exploração petrolífera da empresa que traz este nome. Começam assim os paradoxos e as misturas estranhas que se grudam nas “l’En-villes” da Martinica. A outra mistura paradoxal é uma mestiçagem linguística: a língua crioula e a o francês. Lentamente, Chamoiseau transforma, com o poder de sua narrativa, este Texaco trivial numa área mítica de palavras. Texaco vai ser um pouco como a Macondo do colombiano Gabriel García Márquez. E Marie-Sophie adquire os ares de fábula do coronel Aureliano Buendía. O que a personagem narradora conta de seu pai e de sua mãe traz a marca visceral duma raça: perde implacavelmente o individualismo, ainda que as emoções permaneçam individuais. Para reforçar a trajetória mitológica e simbólica dos achados narrativos, está em cena um urbanista que se chama Cristo. “Dès son entrée dans Texaco, le Christ reçut une pierre dont l’agressivité ne fut pas surprenante.” (“Desde sua entrada em Texaco, o Cristo recebeu uma pedra cuja agressividade não foi surpreendente.”).

As anotações de Marie-Sophie, resgatando sua etnia desde seu pai Esternome e sua mãe Idoménée, ocupam o centro narrativo. Mas há inserções, como as notas do urbanista e o começo e o fim bíblicos do próprio romancista. No entanto, em tudo o sofrimento duma raça poreja das páginas do livro. É a generosidade do escritor que permite, pela suavidade poética da escrita, uma transcendência para além dos lugares-comuns duma história que estivesse registrada somente fora do romance. Num texto menos evocativo e mais simbólico dos cadernos de Marie-Sophie, lemos:

“Cet En-ville n’a pas de vent...chaleur descend.
Ça dépend, disait Idoménée, il faut connaître ses vents.”
(Esta Em-cidade não tem vento... o calor desce.
Depende, dizia Idoménée, é preciso conhecer seus ventos.)

Texaco trata dos movimentos de um povo, claro, mas está cheio de anotações sobre si mesmo, sobre seu processo de construção. Não à maneira do francês André Gide, que em Os moedeiros falsos (1925) reitera amiúde suas sofisticações mentais. Em Chamoiseau a sofisticação é bem menos reiterativa e nasce o mais das vezes das relações da forma com a vida evocada. Talvez o ponto alto, em Texaco, desta autorreferência esteja, na aproximação, lá pelas tantas, entre escrever e morrer, o escrito como pós-morte, ou ao menos como um começa da morte. “Vers cette époque oui, je commençai à ecrire, c’est dire: un peu mourir. Dès que mon Esternome se mit à me fournir les mots, j’eus le sentiment de la mort. Chacune de ses phrases (récupérée dans ma mémoire, inscrite dans um cahier) l’éloignait de moi. Les cahiers s’accumulant, j’eus l’impression qu’ils l’enterraient à nouveau.” (“Por esta época sim, eu comecei a escrever, quer dizer: um pouco, morrer. Desde que meu pai Esternome se pôs a fornecer-me as palavras, eu tive o sentimento da morte. Cada uma de suas frases (recuperada em minha memória, anotada num caderno) o afastava de mim. Acumulando-se os cadernos, eu tive a impressão de que o enterravam de novo.”).

Escritor da era do cinema, Chamoiseau, utilizando os escritos de sua personagem, Marie-Sophie Laborieux, lamenta que não a tenha filmado, que não tenha seus depoimentos em imagens, voz e imagem. Um vídeo. “J’eus un instant envie de la filmer car il n’était de plus en plus sensible que l’audio-visuel offrait de nouvelles chances à l’oraliture, et permettait d’envisager une civilisation articulée sur l’écriture et la parole.” (“Tive por um instante desejo de filmá-la, pois me era cada vez mais sensível que o audiovisual oferecia novas oportunidades à escrita oral, e permitia ter sob todos os ângulos uma civilização articulada sobre a escritura e a palavra.”). Mas é somente “um instante”. O romance Texaco sustenta-se mesmo na força e na expressividade do texto escrito, o imaginário na página (que pode ser de computador, claro). Prescinde de qualquer outro recurso que nossos abismos de homens da era da imagem vislumbram.

Outra captação exemplar perpetrada por Chamoiseau é o sentimento de exílio diante do mar, o mar que conduz o escravo para outras plagas. “Il lui était de plus en plus difficile d’honorer les réunions de ses frères haïtiens dans le local de Sainte-Thérèse; il demeurait à Texaco, taraudé par l’exil, l’oreille tendue, au bord de mer dans l’espoir de capter un soupir d’Haïti.” (“Era-lhe cada vez mais difícil comparecer às reuniões de seus irmãos haitianos no local de Santa Teresa; ele demorava-se em Texaco, atormentado pelo sentimento de exílio, o ouvido aguçado à beira-mar na esperança de captar um suspiro do Haiti."). É assim, nesta “tapisserie d’images” (“tapeçaria de imagens”) que desliza com inegável sedução literária a narrativa de Chamoiseau, o pássaro de Cham, como lhe chamou a certa altura sua própria protagonista.

Em Texaco o leitor verá um bairro, umas pessoas, um universo cultural (no sentido etnográfico) ganharem dimensões que o salvam da morte. Senão o jogam mesmo na morte por estas relações entre escrita e morte. Porém, com a bela visão dum escritor extremamente generoso.

 

(Eron  Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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