A Conquista do Fim do Seculo
A Conquista revela em Coelho Neto um artista intermediario entre uma certa prosa naturalista e uma busca da realidade do seculo por vir


Maranhense de nascimento, escritor essencialmente carioca porque sua família se mudou para o Rio quando ele tinha seis anos de idade, Henrique Maximiano Coelho Neto foi muito lido e apreciado até o momento em que os modernistas de 1922 acusaram o rebuscamento diletante de sua prosa. Para o leitor habitual destes trêfegos anos do século XXI, uma novela como A conquista (1899) pode espantar pela sintaxe de época, o vocabulário muitas vezes raro ou o retorcido das orações; mas o observador empenhado descobre na arqueologia duma peça literária como esta um retrato vivo e voraz do universo intelectual e literário do fim do século XIX, o tom meio vagabundo e disperso das mentes brasileiras envolvidas com as letras que circulavam por aquele mesmo Rio onde, contemporaneamente, Machado de Assis ambientava sua enviesada história psicológica e metafísica de Dom Casmurro (1900). São Rios diversos mas complementares, o de Machado e o de Coelho Neto; se o refinamento de anotações de Machado é imbatível, há uma energia viva, irregular e tensa, que somente a prosa amiúde disforme de Coelho Neto pode captar.
Com um senso narrativo e literário muito transparente, Coelho Neto desenha um país difuso e às vezes mesquinho que, passado o século, não tem mudado tanto. Expondo as vaidades e as ambições dum grupo de literatos inspirados em figuras verdadeiras do fim do Império que conviveram com o autor, Coelho Neto ataca um dos centros destas sociedades, as panelinhas literárias. “Aqui é assim — só têm talento os de um certo grupo da rua do Ouvidor. Ali estão os romancistas criadores, os poetas incomparáveis, os mestres da crítica... Uma súcia de bestas que vive num elogio recíproco, escancarando as mandíbulas entre hiatos encomiásticos, ao coxear dos versos cambaios ou ao chirinolar do período fanhoso e vazio do primeiro nu que zurra.”
A conquista revela em Coelho Neto um artista intermediário entre uma certa prosa naturalista (antes que realista —como no português Eça de Queirós) e uma busca da realidade do século por vir que todavia não lograva a espontaneidade e o despojamento requeridos pelos modernistas. Daí uma espécie de natureza morta de sua estética.
Talvez o grande trunfo de realidade de A conquista seja pôr no centro duma geração a esmo uma “conquista” essencial: a abolição da escravidão. Coelho Neto descreve os discursos e as festas da abolição com uma vivacidade a que a prosa medida de Machado de Assis nunca poderia aspirar: os excessos de Coelho Neto ali são bem-vindos. Suas descrições me evocam umas concentrações populares essenciais para a minha geração, que foi jovem na década de 80 do século XX: as diretas-já, depois de vinte anos de ditadura militar.
“Da janela de O paiz um redator, purpúreo e suado, arengava. Mas o povo reclamava a presença de Patrocínio e foi necessário que Anselmo, comovido, repetisse o que já havia dito Montezuma —que o chefe da propaganda não se achava presente. Mas o entusiasmo ia-se comunicando. Logo que o secretário, terminando sua explicação, levantou um viva à Pátria livre, unissonante respondido pelo povo, da janela do hotel La paiz, um mocinho de bigode ruivo bateu as palmas e, assomando, começou um discurso retumbante, no qual, de maneira com deuses da mitologia grega, passou à figura ensanguentada de Marat, cantaram ‘jandaias em frondes de carnaúbas’, deslizaram igaras, rebentaram grilhões. Como o orador tinha magníficos pulmões o povo, que não se preocupava com a forma e muito menos com a substância das orações, contentando-se com palavras que explodissem, outro começou adiante e, em pouco, de todas as janelas da rua do Ouvidor braços agitavam-se convulsivamente como se todos os moradores da apertada passagem houvessem enlouquecido.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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