A Civilizacao dos Suicidas

O narrador de Serotonina faz desfilar diante de nossa perplexidade sua neurastenia, voltada especialmente para as mulheres com quem se relacionou

18/12/2019 13:58 Por Eron Duarte Fagundes
A Civilizacao dos Suicidas

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A Civilização dos Suicidas

(O desastre aéreo da Air France e os protestos agrícolas)

Na ficção do francês Michel Houellebecq o que deparamos são algumas feridas centrais da civilização que se foi formando entre o fim do século XX e estas primeiras décadas do século XXI. Talvez em Serotonina (Sérotonine; 2019), sua nova obra-prima, a ferida, abrindo-se mais, veja seu líquido jorrar como uma cascata; o que temos nas duzentas e poucas páginas da tradução brasileira é a luta de um homem em desespero para sobreviver aos toques nos ferimentos dados pelo mundo em que vive.

Narrado pela própria personagem central, Florent-Claude Labrouste, o romance traz alguns elementos próximos da própria vida de Houellebecq. Como Florent, o escritor tem a formação de engenheiro agrônomo; uma das mulheres que passam pela vida de Florent é a japonesa Yuzu, e sabe-se que hoje o romancista é casado com uma chinesa, lá pelas tantas sua personagem afirma que “para uma japonesa (segundo tudo o que eu pudera observar da mentalidade desse povo), transar com um ocidental já é quase como copular com um animal.” Talvez haja outras situações autobiográficas ou semiautobiográficas em Serotonina, não sabemos tudo (ou sabemos muito pouco) da vida de Houellebecq, mas esta alimentação de sua criatura com dados do próprio autor não estabelece uma autobiografia, como acontece, por exemplo, no americano Henry Miller, que em muitos livros se autoconstruiu em literatura; pode-se dizer que até mesmo quando se pôs, usando de seu próprio nome e certas características quase coladas de sua persona real, como em O mapa e o território (2010), Houellebecq não fez essencialmente uma figura literária autobiográfica; o que ele faz em seu texto é inventar, construir um outro, claro que vai ser sempre uma parcela dele como criador, porém é um ser-outro, retirado da vida para ser afinal literatura e no entanto tornar à própria vida para permitir que o sangue exale transformando a dor física em dor espiritual. Tudo o que fica bloqueado pela dicção resmungada de Houellebecq em suas conversas que se pode ouvir nas entrevistas que dá, transborda nas páginas que escreve; poucas vezes se pôde acompanhar o quadro literário duma angústia tão pleno quanto o que o leitor desfruta em Serotonina.

Cru em sua posição de observador, de verbo muitas vezes direto em suas anotações sobre as situações menos nobres da vida dos homens, o narrador de Serotonina faz desfilar diante de nossa perplexidade sua neurastenia, voltada especialmente para as mulheres com quem se relacionou; a decadência sexual de Florent, esta amedrontadora e no entanto esquiva personagem que narra, é acentuada por algumas memórias dolorosas: o suicídio conjunto dos pais da personagem (o que remete a um episódio do mundo cultural francês mais ou menos recente, a morte suicida dupla do filósofo André Gorz e de sua adoentada esposa, ambos muito idosos) e o suicídio de Aymeric, colega agricultor e amigo de Florent. Espalhando por seu texto algumas precisas citações literárias que buscam dar marcação ao espírito da personagem —Almas mortas, de Gogol, é sintomático da maneira de ver as coisas de Florent, assim como o olhar decadente e perverso de Florent para o doentio A montanha mágica, de Thomas Mann, e também para O tempo reencontrado, de Marcel Proust, com sua vadiagem no tempo, estas referências dão muito do tom demolidor de Houellebecq, sua literatura, o ser que ele criou para expor o mundo. Também se torna fascinante observar a ponte que vai da náusea sartreana dos anos 30 do século passado a este estado de coisas entediado houellebecquiano; este fascínio interpretativo que pode atacar o analista vem do fato que Houellebecq explodiu em ojerizas a Jean-Paul Sartre numa manifestação feita há alguns anos em Porto Alegre (sua ojeriza sartreana é um belíssimo monumento literário), e, a despeito, nada há de mais parecido com a ficção escrita por Sartre (soturna, niilista, sarcástica, construída mesmo com alguns preconceitos do tempo ou de sempre, inclusive um agudo machismo ou uma indisfarçada homofobia) do que os romances que Houellebecq tem publicado; seria algo edipiano em estética literária, a revolta de um filho irascível contra o pai outrora endeusado por muitos?

(Mergulhado nos delírios psicológicos densos de seus seres, o narrador não deixa de apontar algumas coisas bem contemporâneas, espécies de notas sociais que abrem o romance para o noticiário francês de hoje. Numa delas, se fala no desastre aéreo da Air France, ocorrido há alguns anos; o voo que saíra de Paris e deveria terminar no Rio de Janeiro caiu no meio do Atlântico; ali morreu, na ficção de Houellebecq, a mãe duma das mulheres da personagem, Claire; o narrador, com sua maldade narrativa, aproveita para expor o caso de ódio entre a filha e a mãe. “Sua carreira, em suma, havia decolado, e essa primeira alegria se completou com uma segunda quando, num domingo de março, o voo AF232 da Air France com destino ao Rio de Janeiro explodiu bem no meio do Atlântico Sul.” Numa outra referência bem atual, se não é de sempre, para os franceses, os protestos dos agricultores intersticiam toda a trajetória de Florent, o narrador, que é um homem da terra, um agrônomo. “Os produtores rurais normandos foram convocados para uma manifestação , no domingo ao meio-dia , no centro de Pont-l’Évêque.”)

Um resenhista francês, Jean-Michel Casting, começa suas inquietações de leitor no próprio título de seu artigo: “Serotonina de Michel Houellebecq, é ele um romance cristão?” Dostoievski chafurdou na lama dos homens e alguns lhe chamaram artista paracristão. Houellebecq, no fim do seu livro, após os lodos todos da personagem, faz sua criatura orar assim: “E hoje entendo o ponto de vista de Cristo, seu permanente desespero ante os corações endurecidos: eles têm todos os sinais e não levam em conta. Será realmente preciso que eu, ainda por cima, dê minha vida por esses miseráveis? Será realmente preciso ser tão explícito?”. A aproximação enviesada dum homem e dum artista como Houellebecq ao cristianismo, nesta era pós-religiosa e também pós-ceticismo, uma pós-era onde as correntes tendem a confundir-se, é uma ação ambígua que convida o leitor à própria ambiguidade do romance: parábola ou cinismo? Em ambos os casos: angustiante.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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