O Cinema Como pera
O Poder dos Sentimentos (1983) parece ser uma desesperada tentativa de aclarar o que na verdade no muito claro: o comportamento do homem moderno
A imagem de uma cidade moderna, com suas imponentes construções, à noite. Não há luz, nada se acende; tudo está mergulhado em silenciosas sombras. De forma semilenta, a luminosidade ganha a tela. Trata-se dum filme e o que acabamos de ver é apenas um processo técnico de filmar que joga com estes contrastes visuais de maneira bastante pictórica. Mas é também o estilo de que se vale o realizador do filme para dar a ideia de que amanheceu. Então, podemos ver o parque que circunda as construções e compreender que o cenário básico da narrativa (/) será uma cidade moderna. No quadro seguinte, o que topamos são os raios dourados do sol caindo sobre os edifícios. Foi-se a noite, foi-se o que nos impedia a visão clara das coisas: amanheceu.
Você, de repente, descobriu que ir ao cinema é um interessante preenchimento para o vazio de sua vida. Não falemos apenas do ato físico “ir ao cinema”, mas sejamos mais profundos: digamos —ver cinema e examiná-lo como um reflexo de sua vida é uma fuga ao vácuo que, qual uma mosca, se acerca de você constantemente. Comprar o ingresso, penetrar na sala escura e tornar-se um passivo assistente de que nem a inútil rebeldia intelectual pode salvá-lo, transformou-se num modismo; existe nesta espécie de troca que você faz com as imagens cinematográficas uma linguagem imposta, para a qual pacientemente o educaram. Como em sua vida diária: dominado por seus preconceitos, pela família, pela sociedade; a criação de indivíduos autômatos forjados ao longo de gerações e gerações por processos heterogêneos nem sempre muito evidentes e ao alcance de seu raciocínio. Mas para se rebelar contra tudo, você anota, escreve; no caso do cinema, descobrir os truques habituais, desvendar-lhe os mecanismos de pressão ideológica e mostrar que, no plano da racionalidade, estas armadilhas não funcionaram com você, é uma escassa e mesquinha vingança. Mas é a única coisa a que lhe dão direito: espernear como um eterno bebê.
Senão quando, surge um filme como O poder dos sentimentos (1983), de Alexander Kluge, exibido no cinema ABC, no Festival do Cinema Alemão, numa copromoção entre o Instituto Goethe e o Clube de Cinema de Porto Alegre. Difícil (talvez impossível) materializar em palavras tudo o que o barroquismo visual da obra de Kluge busca transmitir; muito problemático, igualmente, é explicar todo o arsenal de emoções que a projeção do filme desencadeou sobre você, pois a cada fotograma era preciso rever os conceitos da narrativa habitual.
Como ocorre ao primeiro enquadramento da fita (aquela imagem que subitamente amanhece), O poder dos sentimentos parece ser uma desesperada tentativa de aclarar o que na verdade não é muito claro: o comportamento do homem moderno. Depois de iluminar as construções e o parque da primeira ambientação de seu filme, Kluge mostra um avião, uma certa duração de tempo e, finalmente, o ocaso do sol. Há muitas sequências que, descritas em palavras, podem dar do filme uma impressão de naturalismo; mas não há nada desse ar natural do neorrealismo: como todo bom germânico, Kluge adota uma caligrafia quase cubista em sua opção pelo maravilhoso, pelo mistério da combinação de cores; e, à maneira do neodocumentário alemão (que se contrapõe ao cinema-verdade), ele não vê distinção entre o estilo narrativo e o estilo documental, misturando um e outro em sua procura de compreender o funcionamento da sociedade humana.
O espectador que vê Scarface, do americano Brian de Palma, não pode ser o mesmo que adota O poder dos sentimentos. Digamos: é você, Eron Duarte Fagundes, seu corpo e seu cérebro, a mesma maneira biológica de reagir ao estímulo visual-sonoro do cinema; mas existe alguma coisa em você que se desprende, que se liberta ao banhar seus olhos nas inéditas cenas da obra de Kluge. Carlos Saura —quem mais?—, numa sequência muito evocada de Elisa, vida minha, em que a protagonista sublinha uma citação textual, mostrava que a sétima arte, apesar da aparência física imediata da relação significante-significado, pode atravessar os limites e chegar ao coração das coisas. É o que Alexander Kluge faz, dentro duma estética completamente diversa, em O poder dos sentimentos.
Diz o cineasta que são contadas 26 histórias em seu filme, girando em torno do poder dos sentimentos. Seu modelo inspirador foi, confessadamente, Intolerância, de D.W. Griffith. Infelizmente não conheço este clássico. E imagino que algumas das imagens de arquivo que Kluge insere em sua montagem foram extraídas do dito modelo inspirador. Problemático descobrir as 26 histórias. Lembra-me aquela, bastante dialética, em que o sentimento da excitação (aflorado num homem de negócios ao sair de seu cansativo dia) topa com o sentimento do desespero (que abate uma jovem abandonada por seu amante); submetido o desespero (suicida) à excitação (homicida), o homem estupra, sem contrarreação, a mulher. Podemos catar outros excertos de vida, livremente. Uma acusada de matar o marido alude obsessivamente à ideia de que só satisfez o desejo de dar um tiro. Um ator, inquirido por uma repórter, diz que obtém o rendimento do primeiro ato porque não sabe o que o espera no quinto ato; e, ao ser indagado se não o sabe depois de ter representado a peça 84 vezes, cai na mesma teia contraditória da acusada. Como sucede à criatura de Ferdinand, o radical, outro filme de Kluge. No ponto final da projeção, cruzam-se dois episódios mais longos: o da prostituta e seu dono comprador com o dum mercador de diamante e sua companheira de cama e crime. A história da prostituta leva o refinamento estilístico de Kluge a compor uma bizarra cenografia de cores e vidros para retratar este pequeno submundo; como esquecer a proposta imaginada por Alain Resnais, ou seja, ambientar O ano passado em Marienbad numa favela? (contada por Guy Hannebelle em seu livro Os cinemas nacionais contra Hollywood). Recorrendo a Adam Smith, o pai do liberalismo econômico, Kluge conduz o trecho do mercador de diamante a uma meditação sobre os descaminhos do capitalismo, que inevitavelmente atiram as pessoas à violência.
De coisas e sentimentos Alexander Kluge estrutura sua fita. A sociedade das coisas foi erguida no século XVIII, em Londres, quando os representantes das coisas (as firmas) acorreram à capital britânica. A sociedade dos sentimentos nasceu no século XIX, com a ópera, chamada “usina dos sentimentos”. Apaixonado pelo tom épico da ópera, Kluge busca as relações desta arte com o cinema, especialmente com um de seus modelos inspiradores, o clássico Parsifal. O cinema é uma ópera de luz e movimento. Ainda que, de quando em quando, a trilha sonora tenha de render-se a um tango argentino, mais extrovertido e latino, para definir a personagem do mercador de diamante.
(Texto escrito em 28.05.1984: uma das duas vezes em que vi o filme de Kluge. Eu tinha vinte e oito anos e vivia meus anos de glória e descoberta nas salas de cinema).
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br