O Grandiloquente Conto Moral de Losey

Losey, sabendo das dificuldades de impor como espetáculo fílmico uma ópera em imagens em movimentos, faz gato e sapato para tirar seu filme do gueto teatral

15/12/2018 22:38 Por Eron Duarte Fagundes
O Grandiloquente Conto Moral de Losey

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

O ponto de vista da narrativa de Don Giovanni (Don Giovanni; 1979), o filme-ópera dirigido pelo cineasta norte-americano Joseph Losey a partir da ópera criada pelo músico Wolfgang Amadeus Mozart, é o de seu protagonista, o descarado, hedonista e amoral sedutor sexual Don Giovanni, que certamente fez sua glória num tempo de ingenuidade feminina, ao menos no seio da arte. Este ponto de vista, que já está na faceirice ou travessura da música de Mozart, é realçado linguisticamente por Losey na exuberância da sensualidade visual permitida pelo cinema, ao menos na concepção barroca de cinema que Losey exercita neste filme. O libreto de Lorenzo da Ponte, que no primeiro ato acompanha estas pecaminosas descontrações de sua personagem com muita volúpia, no segundo ato vai exercitar o olhar moralista da época para uma criatura tão sexualmente inescrupulosa (ele chegou a assassinar o pai de uma de suas seduzidas para continuar desfrutando seus prazeres: tudo vale, é o Maquiavel do sexo), neste segundo ato as pessoas prejudicadas pela ação de Don Giovanni passam a rebelar-se e desnudar o caráter enganador da personagem central, a narrativa se vai tornando cada vez mais sombria (o faceiro se oculta nestas sombras), até a chegada da estátua diabólica no jantar que força Don Giovanni a cair no fogo de sua culpa (a cena de queimação da personagem é um dos deslumbramentos do filme). Na cantoria final da ópera, as personagens contra Don Giovanni, dentro de embarcações num rio, cantam que “assim acaba quem faz mal”. De uma certa maneira, mesmo seguindo o concerto moral do libreto, Losey subverte os conceitos do conto moral, topando uma grandiloquência que erige o primeiro plano apaixonante duma figura como Don Giovanni.

O filme de Losey navega perplexo nestas oscilações de conceitos dos tempos de transformação. E segue mais ou menos aquilo que está na frase do filósofo Antônio Gramsci que abre o filme como epígrafe: o velho morreu, mas o novo ainda não nasceu e portanto coisas mórbidas acontecem. A personagem principal vive num tempo moral que não a favorece; e o filme de Losey brilha nestas hesitações, condenar e exaltar uma alma que desafiou um tempo morto onde nada veio substituir este tempo morto.

No fim do primeiro ato três figuras mascaradas vestidas de preto investem contra Don Giovanni, apontando suas faltas. Estas imagens sombrias vão ligar o primeiro ato (luxurioso) ao segundo ato (uma descida mais tenebrosa). E são estas ligações narrativas no filme de Losey que estabelecem a dialética de Gramsci que, parece, o cineasta utiliza como holofote de seu pensamento estético nesta sua obra cinematográfica.

Losey, sabendo das dificuldades de impor como espetáculo fílmico uma ópera em imagens em movimentos, faz gato e sapato para tirar seu filme do gueto teatral: uma montagem cheia de mobilidade de câmara e corte, evocando o cinema do austríaco Max Ophüls, e na maneira como acelera a interpretação do tenor Ruggero Raimondi para dar carga dramática à personagem.  Losey arriscou valer-se dos próprios cantores como intérpretes, e seu grandiloquente estilo de filmar passou por cima de algumas debilidades interpretativas. É uma ação estética diferente daquela do português Manoel de Oliveira em seu filme-ópera Os canibais (1988), também recuperando a figura de Don Juan; Oliveira usou seus atores habituais para a consistência física das personagens e na faixa sonora os dublou com cantores líricos. Saliente-se que Losey se põe longe da estaticidade formal de Oliveira. Assim como Losey foge, com seus movimentos labirínticos grandiosos, à aridez do sueco Ingmar Bergman em sua ópera cinematográfica A flauta mágica (1975), também extraída de Mozart.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha
Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro