Uma Atriz e o Mundo
A necessidade da atriz francesa Sandrine Bonnaire como diretora de cinema nasce das necessidades de sua própria vida
A necessidade da atriz francesa Sandrine Bonnaire como diretora de cinema nasce das necessidades de sua própria vida. Ao tratar da trajetória de sua irmã autista, Sabine, utilizando imagens de arquivo familiar de mais de duas décadas e alternando-as com imagens do tempo presente da filmagem na montagem do documentário O nome dela é Sabine (Elle s’appelle Sabine; 2007), Sandrine se vale dos pretextos de Sabine para falar de sua própria relação —dela, Sandrine— com o mundo, seus desafios, suas precariedades, a intensidade da dor de viver que, mesmo assim, pode valer a pena.
Ou seja, Sandrine realiza em seu filme aquilo que o ensaísta brasileiro Jean-Claude Bernardet cognominou “autoficção”; o diretor transforma aspectos de sua vida em ficção, cria a partir de dados de sua existência, se insere meio turbulentamente no processo de criação cinematográfica, já não se apaga diante das câmaras como na narrativa clássica. Em Tarnation (2004) o norte-americano Jonathan Caouette deblatera diante das câmaras sua tresloucada relação com a mãe esquizofrênica. O brasileiro João Moreira Salles, em Santiago (2007), se debruça sobre a figura do refinado mordomo de sua aristocrática família. Sandrine não chega a estas invenções; nem mesmo se pode associar o trabalho de Sandrine àquela espécie de neodocumentário germânico precursora destes documentários-de-primeira-pessoa-de-hoje, como, por exemplo, Não me venha falar em destino (1979), de Helga Reidemeister. Sandrine parece ser mais objetiva do que estas inquietações estéticas de Caouette, Salles e ainda mais do que a velha Helga; tudo o que ela diz sobre Sabine contém, digamos assim, a veracidade da verdade: a incompetência das instituições psiquiátricas frequentadas, as delícias da viagem de Sabine e Sandrine a Nova York em 1993, a degeneração que os tratamentos equivocados ou a própria doença trouxeram para o estado de Sabine (é um choque ver contrapostas suas imagens de outrora às de agora: que foi feito da bela e desenvolta Sabine dos anos 90?). Mas Sandrine nunca deixa de perfurar a objetividade documental: às vezes a câmara se desvia e se concentra num dos colegas de clínica de Sabine, mas a voz de Sabine dirigindo-se a Sandrine (que está atrás da câmara e lhe responde em off) é insistente nas mesmas perguntas que expressam sua necessidade de afeto para com a irmã. Num determinado momento Sandrine está entrevistando a mãe do colega de clínica de Sabine; o plano é fixo, estático mesmo, as perguntas e as respostas rolam, mas senão quando Sabine irrompe com suas perguntas à irmã, depois sai do plano e dá-se sequência à estaticidade da entrevista. Estas intereferências fazem a transformação documental pretendida pela própria cineasta.
Sandrine afirmou em entrevista que não fez seu filme antes para deixar baixar a poeira e não rodar algo vingativo. Não queria uma expressão de raiva. Na verdade, O nome dela é Sabine é uma expressão de afeto cinematográfico: trata do caso duma irmã e no fim do filme é dedicado a todas as irmãs de Sandrine. Ao falar da irmã, Sandrine está falando de si mesma e de sua relação com o mundo. O cineasta brasileiro Eduardo Mocarzel fez o documentário Do luto à luta (2005) para analisar o mundo dos portadores de Síndrome de Down; sabe-se que Eduardo tem uma filha com este problema, mas não é dela que ele trata, é dos outros com este problema. Sandrine chega em alguns momentos de O nome dela é Sabine a tentar desviar o foco para os outros, mesmo que seja para compreender melhor a irmã; mas a voz de Sabine vai instar na imagem, trazendo junto a imagem de Sabine, desestabilizando a figura duma diretora objetiva Sandrine que maneja sua câmara.
No final, Sandrine se pergunta (e ao espectador) se algum dia poderá viajar de novo à América com sua irmãzinha. É uma pergunta dolorosa, mas tem sua remissão, em vários sentidos. O sonho dos franceses. Ir à América foi uma festa para Sabine. Para Sandrine também. E é também um desejo muito francês de filmar na América. Alain Resnais fez seu Providence (1976) em inglês. François Truffaut chegou a atuar sob Steven Spielberg. Louis Malle teve uma fase americana. Sandrine filma sua irmã autista nos Estados Unidos. O que pertencia a um arquivo familiar de imagens surge enfim neste documentário O nome dela é Sabine como a expressão do desejo francês de rodar imagens em solo americano. O sonho humano de Sabine de conquistar a América é igualmente o sonho estético de Sandrine de ser uma cineasta na América.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br