A Perplexidade Introspectiva e Fugidia
A experimentação narrativa em Fronteira é curiosamente árcade: um pré-arcaísmo único na literatura brasileira
A literatura brasileira dos anos 30 do século passado se teria caracterizado por seus aspectos sociológicos, nascida de teóricos como o pernambucano Gilberto Freyre e o paulista Sérgio Buarque de Holanda, cujos pensamentos teriam orientado a produção novelesca da época, especialmente no baiano Jorge Amado e no paraibano José Lins do Rego. Mas no coração dos anos 30 apontaram desvios de caminhos cuja linguagem e narrativa fugiam a estas intenções de um panorama social.
Fronteira (1935) é provavelmente o primeiro e o mais esquecido destes rebentos. E também o romance que tem uma narrativa mais esfumaçada, cuja dificuldade para o leitor acompanhar as situações ficcionais vem da habitual linguagem escorregadia e metafórica de seu autor, o romancista fluminense Cornélio Penna, que constrói uma retórica que fragmenta em estilhaços as impressões do sujeito que narra, que mantendo ainda uma profundidade clássica que afasta inteiramente Fronteira das atuais fragmentações pós-pós-modernas. A experimentação narrativa em Fronteira é curiosamente árcade: um pré-arcaísmo único na literatura brasileira.
Os outros dois livros que desfiguravam as formulações sociais neorrealistas da literatura da época são Angústia (1936), do alagoano Graciliano Ramos, e A luz no subsolo (1936), do mineiro Lúcio Cardoso. Graciliano, sabemos, transitou sobranceiro entre o romance regional-social da década de 30, mas seu texto e suas inquietações expandiam-se para além do teor sociológico, e em Angústia sua abstração foi muito forte. Lúcio nunca fechou com a crueza duma literatura em que o naturalismo era o avô natural; fez seu próprio caminho. Mas em Fronteira Penna foi o mais abstrato de todos, o mais vago, aquele em que o impulso natural da linguagem parece determinar tudo.
É bem verdade que em Fronteira Penna se situa à distância da maturidade que atingirá em obras-primas como Repouso (1949) e A menina morta (1954). No entanto, o leitor habitual de Penna nunca deixará de encantar-se com o poder evocativo do verbo de Penna. Como uma casa que desperta, manhã cedo, o leitor penetra nos sons do romance. “Nesse mesmo instante, como obedecendo a um sinal dado, toda a casa despertou e cresceu em rumor.” Depois, “portas que batem com violência, chamados e gritos”. O intenso diário que é Fronteira vai concluir-se com um capítulo chamado “Epílogo”, onde as coisas tentam explicar-se. “A oposição entre o mundo real e o mundo interior resultante dessa retirada voluntária tornou-se uma luta angustiante de fronteira de loucura, e daí o título que resolvi dar a este livro.” Assim, pois: a fronteira de que fala o narrador não é física, não se dá entre cidades ou países; é espiritual, está na mente.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br