A Perplexidade de Kluge

Artistas na cúpula do circo: perplexos (Die Artisten in der Zirkuskuppel; 1968) é uma amostra do cinema total (ou totalizante) que Alexander Kluge foi depurando ao longo dos anos

18/05/2018 00:37 Por Eron Duarte Fagundes
A Perplexidade de Kluge

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O título do primeiro filme do alemão Alexander Kluge aponta para os rumos de sua filmografia: Despedida de ontem (1966) começou a despedir-se do que já fora muito usado; Kluge passava a criar o verdadeiro cinema revolucionário. (O título do último filme do japonês Yasujiro Ozu abre o jogo da estética do realizador, se alguma dúvida ainda persistisse: A rotina tem seu encanto se debruça sobre a rotina, despojada, terrivelmente monótona, como em todos os trabalhos de Ozu). Não há ligação possível entre Kluge e Ozu, mas este texto (que trata de Kluge) quer agir um pouco como o cineasta alemão, que não tem um assunto para filmar, que na verdade abarca a própria vida, monta seu engenho cinematográfico com divagações soberbas: quero, como Kluge, misturar assuntos disparatados e tentar encontrar alguma unidade: ligar o primeiro filme de Kluge ao último de Ozu é um aparente absurdo, mas o que me move é pensar que os realizadores deram tais títulos a tais filmes numa ânsia de autodefinir-se. Kluge partiu de cara para sua própria definição; Ozu definiu-se no fim; diferenças  entre um visionário germânico e um budista oriental.

Artistas na cúpula do circo: perplexos (Die Artisten in der Zirkuskuppel; 1968) é uma amostra do cinema total (ou totalizante) que Kluge foi depurando ao longo dos anos. As inquietações narrativas (e de filosofia de imagem) de Kluge já repousavam nesta obra-prima rodada no ano-chave de 1968. Sem fazer uma referência direta aos acontecimentos da época, é uma metáfora existencial dos anos 60 que a genialidade de Kluge trouxe para as décadas seguintes. Diz uma das frases da locução-over, já abundante na forma do cineasta, mas ainda sem as manipulações de complexidade posteriores: “A morte é a negatividade definitiva do tempo.” O jovem Kluge desesperava-se diante do desaparecimento? Em janeiro de 1996, ao pronunciar sua “Oração fúnebre para um amigo” no funeral do dramaturgo alemão Heiner Müller, Kluge afirmava que “é um erro crer que os mortos estão mortos.” Antes, bem antes deste encontro com o fúnebre, mas depois, bem depois de Artistas na cúpula do circo, Kluge rodou seu mais assombroso pensamento fílmico para contemplar o cinema como um eterno presente que ataca o restante do tempo: O ataque do presente contra o restante do tempo (1985). Com o cinema, a morte deixa de existir: perpetuamo-nos em nossas imagens, como certas personagens de A invenção de Morel (1940), romance (crítica de cinema?) do argentino Adolfo Bioy Casares. E o cinema mesmo, já disse também Kluge, é anterior à arte do cinema: o cinema esteve sempre na cabeça do homem, que cria imagens. Algumas destas imagens são de pessoas mortas: na cabeça de Kluge, seu amigo Heiner Müller, depois de morto, é feito de imagens, e se perpetua nestas imagens —não morre.

Mas não é este o assunto nevrálgico de Artistas na cúpula do circo. É um assunto de passagem que este comentarista encompridou porque é o assunto que me interessa e rendeu a Kluge seu monumento fílmico, o aludido O ataque do presente. Artistas na cúpula do circo é, como todos os filmes do diretor alemão, um carrossel de assuntos; vai desfiando tudo, como se estivesse interessado na totalidade da vida, e criando uma unidade própria para o filme. Mas se um dos temas pode sobressair como o central é a questão do artista e sua maneira de se relacionar com o público. Ao falar da empresária de circo Leni Peickert, Kluge se espelha nela; a diretora do circo é como o próprio diretor de cinema, quer fazer o que lhe dá vontade, mas ouve seguidamente conselhos de que deve submeter-se à vontade do mercado; entre a vontade própria e a  vontade do mercado, Leni segue seus desejos, ainda que quebre comercialmente sua empresa de espetáculos circenses, assim como Kluge fez o que bem entendeu com o cinema, mesmo à custa da diminuição de seu público. Leni quer alçar o elefante do circo ao cimo do picadeiro: é arriscado? mas quem disse que não pode dar certo? O cinema de Kluge faz o tempo inteiro isto: põe o elefante na cúpula para ver no que dá. Leni, com suas idéias sofisticadas, quer aproximar o circo (diversão popular) da arte do romance, o que lhe traz recriminações reacionárias. O cinema de Kluge namora vários estatutos artísticos para fazer filmes de verdade. Artistas na cúpula do circo é o mais musical dos filmes de Kluge, mas é um musical em grande escala, uma sinfonia como o romance-rio do francês Marcel Proust; as imagens parecem correr atrás dos sons para um coro nupcial, talvez fosse Kluge (e não o italiano Luchino Visconti) quem pudesse filmar o tempo perdido de Proust, que é um tempo feito de partituras em palavras. Kluge: a partitura em imagens.

Como se sabe, todos os filmes de Kluge não se isolam numa história: são agrupamentos de histórias. E, como um carrossel infinito, eles não têm limites espaciais ou físicos: terminam no espaço da projeção, mas se prolongam interminavelmente em nossas memórias. No final de Artistas na cúpula do circo, quando os créditos começam a baixar, uma personagem começa a introduzir mais uma sub-trama a partir da história duma ópera de Verdi.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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