Cinema dos Oprimidos
O texto que segue, escrito por mim em 1987, é um exercício de análise do filme Igreja dos Oprimidos (1986), de Jorge Bodanzky
O texto que segue, escrito por mim em 1987, é um exercício de análise do filme Igreja dos oprimidos (1986), de Jorge Bodanzky. O cineasta é mais conhecido por Iracema, uma transa amazônica (1975-1980), com Paulo César Peréio e Edna de Cássia, uma atriz de origem indígena só vista neste filme; e mesmo assim o nome de Bodanzky não é muito evocado por quem se debruça sobre o cinema brasileiro. No entanto os caminhos de nosso cinema foram em muitos aspectos determinados pelas inquietações de Bodanzky, especialmente esta de como filmar a realidade: um esquecido, de influência. Ou: como o cinema sob influência adota o olhar torto para o que realmente importa. Este meu texto de 1987, que trata de Igreja dos oprimidos, é também um ponto dum determinado momento de meus olhares fílmicos, na curva de meus trinta e poucos anos de idade. Nota-se ali um método de visão cinematográfica trazido das leituras dos textos do grande crítico carioca José Carlos Avellar, um modelo descritivo-analítico feito de minúcias insignificantes que se agigantam pela natureza dos signos: como o próprio cinema de Bodanzky. Meu texto tem seu perfume de época, como o terão talvez o próprio filme analisado e a paixão despertada por este filme: um vestígio deste perfume é usar o cognome Cinema Universitário para a sala que hoje nós conhecemos mais como Sala Redenção, que então engatinhava; entre os prédios das faculdades federais e o parque famoso da cidade, o périplo cinematográfico. (Eron Duarte Fagundes, 2017).
12.08.87
CINEMA DOS OPRIMIDOS
Assim, como se fosse por acaso, dentro da aparência de improvisação que dirige a forma de um documentário, a câmara dá com o rosto sujo e descolorido duma criança, filha de lavradores, sentada no chão; no momento em que encontra o olhar da criança a câmara não resiste, não fica apenas naquele plano fixo para depois passar adiante e mudar de rumo a conversa, a câmara se inquieta, nota-se isto desde o início da cena, mas fica mais evidente esta inquietação quando a câmara se aproxima tensamente do pequeno ser anônimo até enquadrá-lo em primeiro plano; aí é a criança que não resiste e desvia o olhar; neste exato instante de desvio do olhar há um corte na montagem, e este corte representa a perplexidade da câmara diante desta experiência visual.
Esta coisa apanhada ao acaso, que pega e intriga o espectador pelo inesperado, existe muito em Igreja dos oprimidos (1986), o novo compromisso social do cinema de Jorge Bodanzky. Coisa ao acaso, bem do natural do povo, bem terra a terra, mas que existe ao lado das estudadas elaborações teóricas de sociólogos e líderes pastorais. Coisa ao acaso, meio inusitada, meio jocosa, é o fato de a câmara se deter num cão, escondido entre os bancos, durante uma aula às crianças promovida pelo movimento pastoral. Coisas ao acaso parecem ser as frases ditas, de maneira ingênua e às vezes atrapalhada, por pessoas comuns, semiletradas ou iletradas; a câmara acompanha estas frases objetivamente, sem truques, mas igualmente com um frescor que evita o ranço naturalista e a empostação ideológica.
A aparente objetividade, ingenuidade mesmo dos documentários de ficção de Bodanzky não é assim tão ingênua e obtusa; há certa pose cinematográfica no objeto encenado, as pessoas que aparecem diante da câmara sabem que estão encenando suas vivências pessoais para um documentário de luta política, o espontâneo das cenas individualmente consideradas é contrabalançado pela ideia que norteia o roteiro de Bodanzky e Helena Salem: mostrar que religião e reivindicações sociais não se opõem, ao contrário têm pontos em comum.
Na verdade, a carreira cinematográfica de Bodanzky se concentra toda nesta dialética, neste conflito de um cineasta que quer expressar-se realisticamente, apanhando em flagrante os acontecimentos, mas sem perder o controle do material de que dispõe. Neste sentido, Bodanzky se foi encorpando desde as travessuras formais de Iracema (1975-1980), passando pelos delírios de O terceiro milênio (1981), até chegar à maturidade transbordante deste Igreja dos oprimidos; mas a estrutura narrativa nos três filmes se mantém: retirando do meio em que ambienta seus filmes criaturas típicas, o realizador o que faz é provocar sua câmara a ir em busca duma visão mais ampla, menos personificada (menos burguesa) da questão enfocada e do país.
Na procura da espontaneidade e de um público especial, Bodanzky optou, em seus últimos trabalhos, por filmadoras em 16 mm. Muito da força de aproximação da câmara que apanha o rosto duma criança vem da leveza deste tipo de máquina, o que impede uma vertigem visual indevida. Além disso, a bitola 16 mm é mais apropriada para as exibições especiais, como foi o caso, no mês de agosto, no Cinema Universitário, da UFRGS. (Eron Duarte Fagundes, agosto de 1987)
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br