Dylan em Scorsese

Em No Direction Home Bob Dylan (2005) havia uma relacao mais atritante entre musico e cineasta

18/12/2019 13:53 Por Eron Duarte Fagundes
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A paixão pela música incrustada no ser do diretor de cinema norte-americano Martin Scorsese está integral em seu documentário No direction home Bob Dylan (2005), feito para a televisão, lançado em dvd e inédito nos cinemas brasileiros. O senso de narrativa musical-fílmico de Scorsese atinge neste filme momentos supremos, permitindo ao espectador desfrutar ao longo de 208 minutos de duração um grau crescente de excitação estética; depois do último crédito e do último som que pinga na tela, podemos liberar um orgasmo de desafogo e de algum estrépito. No direction home Bob Dylan é a explosão da sensualidade duma época.

A afeição de Scorsese por filmar a música lhe rendeu o clássico O último concerto de rock (1978) e mais recentemente Feel like going home (2003). Dylan foi visto em O último concerto de rock, que tratava da música do grupo The Band. O grupo The Band aparece brevemente tocando com Dylan em No direction home. Os documentários de música de Scorsese, assim, se incrustam uns dentro dos outros.

Dylan foi uma espécie de Arthur Rimbaud (o iconoclasta poeta francês que compôs toda sua poesia até os dezessete anos e depois foi morrer aos 34 anos) da música norte-americana dos anos 60. Sua constante inquietação e seus atrevimentos musicais são expostos com inventividade e intensidade pela narrativa visual-sonora de Scorsese. Scorsese é tão objetivo quanto deslumbrante em seus documentários de música. Dylan, que foi o músico dos anos 60 e depois se apagou abandonando a cena musical, aparece sessentão dando seus depoimentos para a câmara. Constata-se que a medicina moderna, prolongando a vida do indivíduo-artista para além das possibilidades de sua arte, é cruel com o artista; Dylan parou de ser artista nos anos 60. Em No direction home Scorsese praticamente se oculta como entrevistador, diferentemente de O último concerto de rock, onde ele aparecia amiúde. A única vez em que a voz-off de Scorsese vai questionar Dylan recebe deste uma patada, mostrando que o espírito agressivo e atrevido do cantor permanece intacto na velhice. Dylan revela que saiu da música porque estava cansado daquela cena toda, decidiu parar. Scorsese faz seu tímido questionamento: “De que cena você fala?” Dylan, ácido, sorrisos malvados entremostrados nos cantos dos lábios: “De pessoas como você. De ser pressionado.” Scorsese, o artista apaixonado pela música, o cineasta identificado com um ícone de seu tempo, é ironizado por Dylan que o vê na pele de um entrevistador-rotulador. Mas o que No direction home faz o tempo todo é desrotular um mito de massa do século XX: Scorsese conhece a específica profundidade cinematográfica para fazer isto.

Scorsese propõe um documentário reconstruído em Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese (2019), lançamento exclusive no streaming digital pela Netflix. Sua base inicial é algo que realmente ocorreu: a turnê de 1975 chamada Rolling Thunder Revue; à frente dela Bob Dylan mas onde sua eterna companheira de voz Joan Baez era peça não menos fundamental. No entanto, Scorsese insere histórias estranhas, que não ocorreram —o que se sabe, Sheron Stone interpreta a si mesma num episódio inventado segundo o qual a atriz americana, na adolescência, fora uma fã de Dylan que embarcou na turnê convidada ou intimada pelo ídolo. Scorsese utiliza depoimentos atuais de Dylan (bastante envelhecido fisicamente) sobre aquele distante 75, assim como também Joan fala para Scorsese em sua atual velhice; o cantor negro Rubin Hurricane, que estava preso e a quem Dylan homenageou na época numa canção, igualmente derrama o verbo para a câmara no tempo presente das entrevistas. Há coisas verdadeiras e outras que são delírios ficcionais e que o espectador lá pelas tantas não sabe o que é o quê: não sabe em que se fiar. É o jogo de Dylan e Scorsese, o artista da música e o artista do cinema agora como peça musical. É um jogo profundamente hipnótico: que faz cair sons e imagens no olho-ouvido do observador em êxtase.

Em No Direction Home Bob Dylan (2005) havia uma relação mais atritante entre músico e cineasta: como um analista incômodo, Scorsese queria objetivamente descortinar seu Dylan. Em Rolling Thunder Revue a narrativa perde esta ingenuidade: mergulhando no que sobrou dos anos 60 no coração dos 70, penetra no próprio manicômio de filmar para reconstituir a insanidade do tempo: a turnê de Dylan tinha algo de circo cigano; o cinema de Scorsese, neste momento, também.

Entre os contatos artísticos e culturais de Dylan nos anos furiosos, surgem o dramaturgo e ator Sam Shepard (que, reflexionando sobre Shakespeare, pensa o artista como determinado pelas personagens que o rodeiam) e o escritor maldito Allen Ginsberg; nos túmulos, as sombras do francês Arthur Rimbaud e do americano Walt Whitman assombram as mentes de Dylan e sua turma. Shepard é, como Sheron, incluída em sua relação com Dylan numa aproximação inventada para os anos 70, um texto para um diretor que nunca existiu e que faria um filme em torno de Dylan. Se os fatos são criados por Scorsese (e talvez Dylan ou os  demais), o significado de tudo isto é autêntico; estes símbolos de criação (nascemos para criar, diz Dylan, a certa altura do filme) se esforçam por reconstituir ou representar outros fatos que teriam de fato acontecido naqueles anos antigos.

Uns o chamam pseudodocumentário (algo próximo de Zelig, 1983, de Woody Allen, que é uma ficção que mimetiza o documentário). Outros o apodam documentário de ficção. Mas se pode aqui dizer que é uma reconstrução de Dylan sob a forma documental que se afasta aqui e ali do documentário para buscar alguma verdade: rolling thunder, o universo indígena, o universo subterrâneo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@vdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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