O Compromisso da Literatura

Nao se pode ler a narrativa de O olho mais azul sen?o como parte inicial ou final das anotacoes que Morrison faz no posfacio

25/01/2020 17:33 Por Eron Duarte Fagundes
O Compromisso da Literatura

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Um dos sintomas do racismo na realidade literária pode ser o fato de que este comentarista, apaixonado por livros como é, nunca lera antes uma obra da escritora negra norte-americana Toni Morrison. Após sua morte, em cinco de agosto de 2019, aos 88 anos, os necrológios em homenagem à romancista trataram de divulgar melhor seu nome. Nascida em Lorain, Ohio, nos Estados Unidos, em dezoito de fevereiro de 1931, Morrison começou seu périplo de palavras em livros publicados com O olho mais azul (The bluest eye; 1970). É com este romance que começo meu périplo de ler Morrison.

No posfácio a autora, no primeiro parágrafo, explica a origem (real) de sua ficção: “Tínhamos acabado de entrar na escola primária. Ela disse que queria ter olhos azuis. Olhei-a, imaginei-a com eles e senti uma repulsa violenta pela aparência que visualizei caso o desejo fosse atendido. O pesar em sua voz parecia pedir comiseração e fingi comiseração, mas, perplexa com a profanação que ela propunha, fiquei furiosa com ela.” Não se pode ler a narrativa de O olho mais azul senão como parte —inicial ou final— das anotações que Morrison faz no posfácio. Há algo luminosamente dolorido em sua visão das coisas, as lembranças de menina de colégio revisitada por uma comprometida escritora adulta. “E vinte anos depois eu continuava me perguntando como é que se aprende isso. Quem disse a ela? Quem a fez sentir que era melhor ser uma aberração do que ser o que era ela? Quem a tinha olhado e achado deficiente, em peso tão pequeno na escala da beleza? Este romance busca relances do olhar que a condenou.” Há aí, e em várias partes do romance, frêmitos da literatura mais profunda: uma devassa da alma na alma do leitor.

A personagem central de O olho mais azul é Peccola Breedlove, a garotinha negra que, à semelhança da colega de infância de Morrison, queria ter olhos azuis, como suas colegas brancas. “Por mais que tentasse, nunca conseguiu fazer os olhos desaparecerem.”, angustia-se Peccola. O desejo de olhos azuis é um ato místico de Peccola: uma religião em si. “Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse.”

Não é Peccola que narra O olho mais azul. É Claudia Mac Teer, uma amiga de Peccola que vê, como descoberta e espanto, as questões de sua companheira e as de outras personagens que circulam por este universo da província estadunidense.

O texto de Morrison tem uma extraordinária elegância estilística. Faz uma espécie de poética da memória. Ainda a descrição do estupro que o pai de Peccola impõe ao corpo desprotegido da menina negra sua filha, Morrison abdica da repulsa, da violência, mantém as formas suaves, o jeito sensível de ver tudo, “Foi tão doloroso sair de dentro dela que ele foi rápido e arrancou o membro da enseada seca que era a vagina dela.”

Morrison fez de sua primeira publicação literária o desejo áspero e flutuante de relatar a experiência mais aguda de sua infância, talvez aquela que determinou seu destino de escritora, o destino e a maneira de sua literatura.

“E assim foi.

Uma menina negra anseia pelos olhos azuis de uma menina branca, e o horror na cerca do seu desejo só é superado pelo mal da realização,”

Os poços contraditórios dos racismos de todos nó estão inteiros neste primeiro belo romance de Morrison, O olho mais azul. É a primeira onda da determinação de Morrison, O olho mais azul. É a primeira onda da determinação e do compromisso duma escritora cuja grandeza está em ser o que é: americana, negra e feita de indignação de tudo isso.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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