Persuadindo o Leitor
Cada palavra de Persuasao deve ser degustada pelo leitor como se estivesse bebendo literatura primitiva
Persuasão (Persuasion; 1818) é um romance de extrema perfeição. A fama de sua autora, a inglesa Jane Austen, se estrutura em torno de livros como Razão e sensibilidade (1811) e Orgulho e preconceito (1813), mas é em Ema (1816) e neste Persuasão que sua arte atinge um ritmo narrativo paroxísmico, único, de que só esta escritora, semeando a ingenuidade de um lugar-comum provinciano, seria capaz de encontrar o tom certo. A província britânica do século XIX topou na ficção de Austen sua notável dignidade artística, emblematicamente lançada para as águas turvas da posteridade.
Como geralmente ocorre no universo da romancista, os enleios femininos ocupam o centro duma trama que é a própria linguagem; os homens são tão-somente adereços para o exercício da feminilidade verbal, de imaginação que a ficcionista executa. Assim, Anne Elliot é uma das grandes criações de Austen e a seu redor circulam um chilreio característico do mulherio do interior inglês oitocentista; o capitão Frederick Wentworth é o objeto de desejo do verdadeiro sujeito da ação, que são os olhares de Anne e seu séquito, elaborados (os olhares) de maneira profundamente feminina.
Cada palavra de Persuasão deve ser degustada pelo leitor como se estivesse bebendo literatura primitiva, primeira, uma complexidade inicial antes dos avanços mentais do norte-americano Henry James ou das exuberâncias estéticas do inglês Edward Morgan Forster, dois outros apogeus da literatura de língua inglesa. Somos persuadidos a acatar, contritos, a fabricada ingenuidade de província que emana de Persuasão.
“Como Anne Elliot podia ter sido eloquente, como, pelo menos, os seus desejos eram eloquentes a favor de uma ligação afetuosa precoce e uma alegre confiança no futuro, em oposição àquela cautela muito ansiosa que parece insultar o esforço e não confiar na providência! Ela fora forçada a ser prudente na juventude e, à medida que envelhecia, aprendia o que era o romance: a sequência natural de um início nada natural.” “Anne esperava ter ultrapassado a idade de corar; mas, certamente, não tinha ultrapassado a idade da emoção.”
Persuasão foi filmado em 1995 pelo norte-americano Roger Mitchell com todas aquelas falsas sutilezas de época que uma certa Hollywood se esmera em produzir quando se debruça sobre clássicos literários (há um pouco disto em Primo Brasílio, 2007, do brasileiro Daniel Filho, que todavia vai um pouco mais além destes fricotes da indústria). A obra-prima de Austen é citada, meio deslocadamente, em A casa do lago (2006), filme norte-americano do argentino Alejandro Agresti onde a personagem da estrela Sandra Bullock se esforça por tomar para si as inquietações longínquas e inquietantes do mundo de Persuasão; em vão, porém.
Passados quase dois séculos de sua feitura, esta esplêndida realização literária ainda perturba seus leitores. Creio que muito daquela objetividade provinciana da frase de Austen se perdeu nas alterações linguísticas ao longo dos anos; como ocorre em tanta leitura feita pela posteridade, no lugar desta objetividade para contemporâneos surge uma outra coisa, entrelinhas, sinuosidades, mistérios e distâncias. Tanto melhor para a grandeza do livro.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br