O Leitor Le o Filme

As fusoes tematicas de O Leitor lembram certas coisas que o cinema fazia muito nos anos 70

12/11/2020 14:05 Por Eron Duarte Fagundes
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O Leitor Le o Filme

(Ou o Cinema Como Paráfrase da Literatura)

 

 

ANTES DO ESCRITO: Este texto é dedicado a dois amigos cinéfilos, cujas ideias, o mais das vezes opostas entre si e muitas vezes opostas às minhas ideias, têm iluminado minhas “reflexões cinematográficas”. São eles André Kleinert e Anna Hauser. André detestou o filme, que acho bom. Anna é mais entusiasmada do que eu com um filme que não me parece tão permanente assim, e leva também a grande vantagem de ter lido o romance no original alemão, idioma que não domino absolutamente.

 

 

Bernhard Schlink é um escritor alemão desconhecido por aqui. No encalço da transposição cinematográfica de seu romance O leitor (Der Vorleser; 1995), chegou ao Brasil, em tradução de Pedro Süssekind, a edição deste seu livro pela editora Record. É a apresentação de Schlink ao leitor brasileiro, que em sua maioria deve ter visto antes o filme e depois palmilhado as páginas da narrativa literária. Quem viu a realização fílmica e depois vem a dar com o livro, notará que o filme de Stephen Daldry, roteirizado com justeza e personalidade por David Hare, seguiu por via de regra o factual do romance: uma história de amor entre um adolescente iniciático e uma madurona na Berlim dos anos 50, ocorrendo que esta história de amor adota fortes conotações políticas; o analfabetismo dela e a tardia consciência crítica dele ao pôr no papel a história se embatem numa trama que evoca um pouco (e sutilmente) a trágica experiência do nazismo na Alemanha.

No entanto, pode-se dizer que o romance de Schlink tem algumas coisas mais densas que o diferenciam daquilo que o filme propõe, e não creio que se deva atribuir às sempre existentes diferenças entre cinema e literatura que geralmente assomam nestes casos, porém muito mais às opções do diretor Daldry e seu roteirista Hare. O romance é narrado na primeira pessoa. No fim do livro, o narrador observa: “Primeiro quis escrever nossa história para livrar-me dela.” Há certas sutilezas de narrativa verbal (arrisco-me a dizer, mesmo sem acesso ao original germânico) que o cineasta Daldry, por mais que se esforce, não logra topar o correspondente visual. Daldry altera certas coisas do livro. O filme é contado por um narrador neutro, que é a câmara; elimina-se o que poderia ser a voz-over duma primeira pessoa; não cuido que a utilização deste recurso, se Daldry dele se valesse, pudesse ser tachado de literário ou cinematograficamente espúrio, basta ver o que fazem desta primeira pessoa over um Jean-Luc Godard ou um Terrence Malick. Embora desprezando a narrativa na primeira pessoa, Daldry não deixa de acentuar o ponto de vista do garoto, que vai ser o centro do filme como já foi do livro. E no cabo do filme Michael Berg está contando à sua filha a história que o espectador acabou de ver, assim começando a refazer o filme numa primeira pessoa assemelhada à do livro: é um pouco como se o próprio filme fosse antes, mesmo com o narrador neutro da câmara, um espelho da narrativa do protagonista para sua filha; um final assim é absolutamente estranho às intenções do livro, a despeito de se poder pensar no filme como uma interpretação do livro assim disposta, o protagonista conta para alguém de sua intimidade uma história de sua juventude.

O leitor, o livro, não usa nenhum destes expedientes à margem, expedientes que no filme funcionam como uma ficção crítica do contar. O livro, o que parece ser? Documentalmente, se aparenta de memórias de uma personagem que poderia ter existido de verdade: é como se alguém  que de fato viveu aqueles episódios dialogasse diretamente para o papel branco, uma conversa de Michael com Hanna diante do testemunho do papel. “A intenção de escrever minha história com Hanna nasceu logo após sua morte”, anota o narrador, referindo inclusive as muitas versões da história embaralhando-se em suas lembranças.

O romance de Schlink inclui uma cena importante para a pista do analfabetismo de Hanna que o filme curiosamente excluiu. É aquela em que Michael, afastando-se do quarto em que estava com Hanna por breves momentos, deixou um bilhete avisando que logo voltaria; ao retornar, surpreendeu-se com a ira dela, e só muito tempo depois, ao vê-la negar-se a confessar seu analfabetismo no tribunal, reflexiona a verdade: ela nunca lera aquele bilhete porque não sabia ler e, não lendo-o, imaginara que ele fugira para sempre. Porém, o centro da história de Schlink não deixa de estar na trama do filme: incapaz de ler, ela pede a Michael que lhe leia livros, como Odisseia do grego Homero. Ou contos do russo Anton Tchekov: no livro, a referência é assim, contos de Tchekov; no filme, Daldry e seu roteirista Hare utilizam, em três sequências distantes no tempo narrativo, as famosas e impecáveis orações iniciais da novela A dama do cachorrinho (1900), de Tchekov.

Detidamente, o romance de Schlink tem uma estruturação romanesca que tende à agilidade fílmica, caracterizada especialmente numa certa objetividade de propósitos, o que deve ter facilitado a transposição para a tela. Demais, as fusões temáticas de O leitor lembram certas coisas que o cinema fazia muito nos anos 70, o que pode indicar que Schlink viu bastante destes filmes: fusões que fazem com que uma história de amor aos poucos seja cruzada por uma inusitada densidade política; o que seria o aprendizado emocional e sexual de um adolescente europeu na década de 50 logo se converte num olhar tumultuado sobre a experiência nazista para finalmente desaguar em lados obscuros da natureza humana. Apaixonada por histórias, incapaz de ler, Hanna  fazia as prisioneiras de seu campo de concentração lerem em voz alta para ela assim como faria anos depois com o adolescente que conta a história em O leitor: seria o cotidiano dos seres humanos de fato assim como este pequeno gesto de Hanna, “lê para mim”, um ato dominador e autoritário que esconde uma esquiva inferioridade que é difícil de confessar mesmo que se tenha de ir para a prisão? Michael seria para Hanna uma extensão de suas experimentações sob o nazismo?

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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