O Cinema Que Se Redescobre
O assunto de Flores de Xangai esta enraizado no cotidiano oriental, cinematografico ou nao
Flores de Xangai (Hai shang lua; 1998) é uma narrativa cinematográfica fechada em interiores iluminados a medo por uma luz amarelada, outonal. Seu realizador, o taiwanês Hou Hsiao-hsien, não se preocupa com levar para o espectador o entendimento imediato da cena: o que lhe interessa é provocar no assistente a sensação plástica. Há exuberância estética em Flores de Xangai, mas se trata dum esteticismo agudo: a esterilidade formal passa longe das formas desafiadoras da realização de Hsiao-hsien.
O plano-sequência, revisitado e revigorado, é o elemento estilístico de Flores de Xangai. A cena inicial —um prólogo que antecede os próprios créditos iniciais— dura cerca de dez minutos, sem nenhum corte: é um plano-sequência a uma mesa de refeição onde as personagens se deliciam com um jogo oriental. Há outros planos a mesas de refeições, planos-sequência mais curtos, dois ou três minutos. (O mais belo plano-sequência do cinema a uma mesa de refeições e diálogos foi filmado pelo suíço Alain Tanner em Jonas que terá 25 anos no ano 2000, 1976). Depois deste plano de dez minutos, Hsiao-hsien despeja na tela, logo após os créditos iniciais, um plano de cerca de seis minutos onde somos apresentados às prostitutas de luxo da Xangai do fim do século XIX, as “flores” desejadas pelos aristocratas chineses da época. A maioria dos planos-sequência que se seguem ao correr do filme, todos durando entre dois e cinco minutos, é iniciada por planos (primeiros planos ou e, em alguns casos, planos de fundo) onde uma luz amarelada vinda de lampiões dá o tom visual estranho da cena. Assim, a iluminação é, juntamente com o plano-sequência, uma personagem central deste “filme estético”. Quando, esporadicamente, as luzes dos lampiões se ausentam, surge uma baça luz exterior que chega ao interior filtrada por vidraças.
Outro dado de arcaísmo cinematográfico recriado revolucionariamente em Flores de Xangai são os escurecimentos de imagens que interligam os planos-sequência. Kenji Mizoguchi, mestre do cinema japonês e uma das referências do cinema de Hsiao-hsien, foi outro que, valendo-se dos planos-sequência, usou escurecimentos como um fenômeno de rigor de montagem. Mas o quadro cinematográfico em Hsiao-hsien tem um outro tipo de movimento, uma curiosa abstração das circulações da câmara que se renova a cada minuto e, mesmo estático, desdenha da fixidez de Mizoguchi.
Flores de Xangai é originalíssimo por sua avançadas formas, nunca topadas nos mestres em cujas fontes Hsiao-hsien bebe (Mizoguchi, Ozu). Mas o assunto de Flores de Xangai está enraizado no cotidiano oriental, cinematográfico ou não. A prostituição luxuosa fascina aqueles povos; e também a prostituição mais empobrecida. De Mulheres na noite (1948), do japonês Mizoguchi, a O império dos sentidos (1976), do também japonês Nagisa Oshima, a figura da mulher que vende seu corpo com paixão está nas imagens orientais quase como um ícone visual. Flores de Xangai abusa deste ícone e o rebusca, revolucionando.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br