Ruy Guerra, em Pedacos
Ruy Guerra eh um nome pesado do cinema brasileiro. Mas suas derrapagens atuais derivam provavelmente de seus arcaismos de filmar mal instalados
Em Quase memória (2015), o filme que o realizador brasileiro nascido em Moçambique Ruy Guerra extraiu do livro do jornalista e escritor carioca Carlos Heitor Cony, o espectador não deixará de reconhecer a personalidade única de um artista que no auge do Cinema Novo filmou algumas obras-primas como Os cafajestes (1962) e Os fuzis (1964). É esta força muito pessoal de Guerra que impede às divagações meio sem norte de Quase memória uma aproximação ao público habitual dos cinemas; lançada no Festival do Rio em 2015, a realização somente em 2018 chegou aos circuitos comerciais, talvez fiando-se que a então recente morte de Cony pudesse ser um estímulo para a plateia. Mas a dificuldade de Guerra na comunicação com o público vai permanecer: suas linhas tortuosas de narrar se aproximam do hermetismo, no que se afasta bastante do texto translúcido e jornalístico (no grande sentido) que Cony imprimiu à sua narrativa.
Para o analista frio, o conflito central do filme de Guerra pode ser deslocado destas questões das relações do cinema de Guerra com o público e a indústria. Na verdade Guerra, em suas buscas arcaizantes para o método de narrar, desconectou seu melhor tom; em seu trabalho anterior, O veneno da madrugada (2004), inspirado em Gabriel García Márquez, um escritor colombiano mais próximo dos delírios latino-americanos de Guerra, as coisas chegaram a apontar um funcionamento narrativo. Quase memória, o filme de Ruy, é um pálido retrato, em formas mais tortuosas, do universo de Cony. Guerra toma bastantes liberdades para com o original literário, desde o início, o que deixa de ser uma das formas cinematográficas de adaptar literatura; nas duas primeiras sequências põe primeiro a notícia radiofônica do estado de sítio implantado pela ditadura em 1968 e depois (segunda sequência) também uma nota de rádio sobre a morte do automobilista Ayrton Senna, dois fatos inexistentes no livro. Também não há no livro a citação a Federico Fellini, com a cena que imita o trecho de Amarcord (1972) em que um louco (o tio louco do protagonista felliniano) exclama “quero uma mulher”, em bom italiano, e Ruy aproveita para zombar um pouco das influências de Fellini sobre o cinema do norte-americano Woody Allen. (É bem verdade que o livro de Cony traz outras referências cinematográficas que Ruy não inclui em seu roteiro; em Cony também há uma precisa divagação sobre Proust e a memória, algo que o roteiro de Ruy deixa de lado, talvez por considerar a maneira com que Cony aborda o escritor francês pouco endereçada a uma estrutura fílmica). Tudo é muito curioso, muito culto no filme de Ruy, mas pouco a pouco parece um ninho desengonçado: as cobras estão desalinhadas.
Ruy Guerra é um nome pesado do cinema brasileiro. Mas suas derrapagens atuais derivam provavelmente de seus arcaísmos de filmar mal instalados. Estorvo (2000), que Ruy buscara na ficção de Chico Buarque de Holanda, já apresentava as teias de aranha que retornam em Quase memória. Ruy chegou a ter até uma notável participação como ator no clássico germânico Aguirre, a cólera dos deuses (1972), de Werner Herzog. Nada de seu grande passado o exime da perplexidade mal disposta do presente. No fim do livro de Cony lemos: “até que chegue o amanhã onde as grandes coisas são feitas.” Depois da adaptação de Cony, Guerra seguiu em frente sua trajetória de diretor de cinema, em busca deste amanhã que Quase memória instabilizou.
Na atual quadra de seu jeito de filmar, Ruy Guerra trabalha bastante com as possibilidades literárias do cinema, as fusões entre a palavra e a imagem, o intelectualismo poético árido e a busca duma difícil naturalidade nos monólogos das criaturas em cena. Aos pedaços (2019), exibido no Festival de Cinema de Gramado de 2020, realizado via internet e pela televisão, nasceu dum projeto literário do autor: desistindo de completar e editar seu livro, Ruy pegou das sobras de seu texto e construiu um roteiro cinematográfico. O resultado está no filme que se pôde ver, uma narrativa que tem uma forte dificuldade inicial de comunicação com o espectador e que muito lentamente poderá ir estabelecendo algum fascínio de encenação graças a alguns achados de seu mosaico visual.
No centro da trama, um homem casado com duas mulheres, uma se chama Ana, outra Anna, e inquieto porque sabe que uma delas o vai matar. Aparece na cena uma outra personagem masculina, um possível irmão (falam do pai, o mesmo para ambos) ou só uma projeção da personagem central. As duas mulheres talvez sejam uma só, signos, projeções de novo. A outra personagem masculina é um pouco o lado sombrio, demoníaco da personagem principal: as conversas entre os dois parecem querer refazer um diálogo assustador, infernal de Os irmãos Karamazov (1880), de Fiódor M. Dostoievski. As metamorfoses entre o protagonista e sua personagem-sombra, mutações, trocas e demências, evocam algo do conto William Wilson (1840), de Edgar Allan Poe. Enfeixando suas referências, Aos pedaços começa a fazer algum sentido dentro de sua rigidez de planos concebidos quase literariamente.
Sublinhe-se também a excelência que Ruy extrai de seus atores, o quarteto formado por Emilio de Mello, Simone Spoladore, Christiana Ubach e Julio Adrião. Ruy se vale com muita habilidade da voz de Arnaldo Antunes (cantor) para fazer os interstícios verbais-over da narrativa, utilizando do texto elucidações que talvez não coubessem nos diálogos ou monólogos.
Instável, rígido e precário muitas vezes, tateando relações entre cinema e literatura ou propondo-se como um cinema intelectual à margem das facilidades habituais despejadas no comércio de imagens, Ruy Guerra, independentemente do resultado final a que chegue com seus trabalhos, é um artista necessário para estes dias de brutalizadores.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br