O Crime do Papai Noel

As historias contadas pelo ficcionista belga Georges Simenon tem uma estrutura de movimentos narrativos parecidos

24/10/2020 15:10 Por Eron Duarte Fagundes
O Crime do Papai Noel

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As histórias contadas pelo ficcionista belga Georges Simenon tem uma estrutura de movimentos narrativos parecidos, parecem na verdade reiterações literárias. O estilo da escrita de Simenon também se vai repetindo no minúsculo das frases, no extraordinário uso que ele faz de sintaxe e palavras do dia-a-dia: sua ficção tem o jeito de crônica de jornal, como flagrantes da vida ao vivo. O que o autor faz de texto para texto é depurar ao extremo a estética de sua literatura: há, talvez, um percurso exaustivo, quase sanguíneo nestas gotas literárias que pingam na página, diante do leitor, como uma chuva calma.

Em Um Natal de Maigret (Un Noël de Maigret; 1951), escrito por Simenon em sua estada na Califórnia, nos Estados Unidos (no fim do texto lemos a assinatura: “Carmel by the sea, Californie, mai 1950”, é na cidade de Carmel by the sea que o escritor está quando redige sua história, concluída em maio de 1950) e que se pode ler no volume 5 da edição das obras de Simenon pela Omnibus de 2002, é um exemplar de grande precisão da classe rara do romancista/novelista/contista, a predisposição/vocação para narrar, aquilo que um contemporâneo dele, o também francês André Gide e que era um escritor muito diferente de Simenon em suas formas retorcidas de meditar na linguagem a partir da exibição das sofisticações, define como “le plus grand de tous, le plus vraiment romancier que nous ayons eu en littérature” (“o maior de todos, o mais autenticamente romancista que tivemos em literatura”).

Um Natal de Maigret, seja por sua extensão, seja por suas braçadas narrativas, faz uma intermediação entre uma novela e um conto. E reitera os procedimentos habituais de Simenon. Debruça-se inicialmente sobre o cotidiano de sua personagem, o inspetor Maigret, um cotidiano que parece tedioso e nada renderá em termos de romance. “C”était chaque fois la même chose.” (“Era toda vez a mesma coisa.”), eis a frase que abre o contato de Simenon com o leitor nesta pequena aventura de Natal. Maigret suspira, antes de dormir, e resmunga: “—Demain, je fais la grasse matinée.” (“Amanhã durmo até mais tarde”). O leitor sabe que não será assim: que aí vem coisa. Porque se trata de Simenon. E de Maigret. No desenrolar do cotidiano, alguma coisa sairá da rotina. E a esposa de Maigret, que talvez seja uma leitora da vida do marido, alguém que saiu daqui de fora para dentro do livro, também o sabe. “Et Mme Maigret l’avait pris au mot, comme si les années ne lui avait rien enseigné, comme si elle ne savait pas qu’il ne fallait attacher aucune importance aux phrases qu’il lançait de la sorte.” (“E Madame Maigret tomara a frase ao pé da letra, como se os anos não lhe tivessem ensinado nada, como se ela não soubesse que não se devia dar nenhuma importância às frases que ele lançava ao acaso.”). O leitor sabe, a senhora Maigret sabe que logo a rotina será desmanchada pela introdução de outras personagens: é a técnica reiterativa de Simenon. Começa com o rotineiro de Maigret. Por exemplo, o amanhecer em sua casa. “Il ne mangeait jamais le matin, se contentait de café noir. Mais c’était encore un rite, une idée de sa femme. Les dimanches et jours de fête, il était censé rester au lit jusque tard dans la matinée, et elle allait lui chercher des croissants au coin de la rue Amelot.” (“Ele nunca comia de manhã, contentava-se com café preto. Mas era um rito, uma ideia de sua mulher. Nos domingos e em feriados, ele imaginava permanecer na cama até tarde pela manhã, enquanto ela ia buscar para ele croissants na esquina da rua Amelot”).

Mas este rotineiro não tardará muito em ser abalado. O casal Maigret chega a pensar vagamente, e os expõe num breve diálogo, na ideia de aproveitar o feriado de Natal para uma pequena viagem. Até o momento em que... “Deux femmes venaient d’en sortir, sans chapeau.” (“Duas mulheres acabavam de sair dali, sem chapéu.”). De onde saem essas mulheres? Do apartamento em frente, vizinho de Maigret, em cuja porta Maigret fixara seu olhar vago. Elas estão na frente da porta de Maigret. A frase da senhora Maigret, “j’espère qu’on ne va pas te déranger le jour de Noël”, “espero que não te perturbem o dia de Natal”, não se cumpre. A história que elas trazem começa a balançar a pacatez do feriado de Maigret. Uma delas é casada e tem a seu cargo, morando com ela, uma pequena sobrinha: é a senhora Martin, a pequena chama-se Colette. A outra é vizinha dela, solteira: senhorita Doncoeur. Ambas parecem preocupadas que Colette diz ter recebido na noite de Natal a visita do Papai Noel e apresenta uma boneca que o velhinho lhe deu de presente como prova. Uma aparente trama singela, uma ingenuidade infantil. Mas, sabendo que Papai Noel de verdade não existe, quem é que se fantasiou da famosa personagem natalina e entrou no quarto da menina? As mulheres recorrem à argúcia de observações de Maigret para desvendar o que se esconde por trás do incidente em que Colette encontrou Papai Noel. “La petite, avec un sourire malin, a écarté son drap et nous a montré, dans le lit, serrée contre elle, une magnifique poupée qui n’était pas la veille dans la maison.” (“A pequena, com um sorriso maroto, afastou o lençol e nos mostrou, na cama, apertada contra ela, uma magnífica boneca que na véspera não existia na casa.”). O Papai Noel, a boneca e o que escondem os fatos banais, aparentemente inofensivos: como em outras minúsculas tramas de Simenon.

Lentamente, de interrogatório em interrogatório, o Natal de Maigret descortina um crime por trás da banalidade: um caso de adultério, uma maternidade de tia indisposta, alguém que foi morto porque descobrira o adultério, disfarçar-se de Papai Noel diante da menina era iludir uma testemunha inesperada e imatura. Maigret atenta nos detalhes para elucidar. Um cigarro acendido, por exemplo, revela algo de sua interlocutora. “Elle tira une cigarette d’un étui d’argent, en tapota le bout, l’alluma avec un briquet. Peut-être fut-ce geste qui incita Maigret à lui poser une question.” (“Ela tirou um cigarro dum estojo de prata, com uma batida na extremidade, o acendeu com um isqueiro. Talvez tenha sido esse gesto que levou Maigret a fazer-lhe uma pergunta.” Mais adiante, um novo acender de cigarro move novas antenas do comissário. “Une intuition encore, quelque chose de vague, d’inconsistant. Maigret avait beau regarder la femme qui lui faisait face e qui avait allumé une nouvelle cigarette, il ne parvenait pas à la voir en maman.” (“Uma intuição ainda, alguma coisa de vago, de inconsistente. Maigret buscava em vão olhar a mulher que o encarava e que acendera um novo cigarro, ele não chegava a vê-la como mamãe”). Da associação entre o verbo do narrador onisciente de Simenon e o íntimo da personagem Maigret, aonde se chegava pelo discurso indireto livre, o romancista chega ao auge daquilo que Gide conceitua como o mais verdadeiro dos romancistas, o ato de narrar em seu grau puro.

Depois que a rotina é interrompida pelo estranho conto de Natal, como sempre, ele retorna. E Simenon sabe compor a rotina do começo de sua história como ninguém. No começo da novela, a senhora Maigret ironiza, meio inconscientemente, a disposição do marido para no dia de Natal acordar tarde. Na cena final, Maigret chega em casa, eles conversam brevemente, mas na oração final é a mulher quem dá seus últimos atos de rotina nesta singela e aguda história. “Elle renifla, chercha un mouchoir, n’en trouva pas et enfouit son visage dans son tablier.” (“Ela fungou, procurou um lenço, não o encontrou por ali e afundou seu rosto no avental”). Talvez o leitor pudesse seguir a senhora Maigret em seus gestos diante do texto exemplar de Simenon.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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