As Profecias e a Arte de Graciliano Ramos
Graciliano escrevia sobre tudo, sobre coisas em que ele era mestre, sobre outras coisas em que nem tanto
O alagoano Graciliano Ramos é um dos prosadores brasileiros de luxo. Não porque ele fosse luxento, para usar de um adjetivo carregado de significações do povo e que habitualmente designa o indivíduo cheio de nove-horas ou de não-me-toques. Antes pelo contrário: o luxo linguístico de Graciliano vem da objetividade do olho no olho do leitor. Linhas tortas (1962), uma publicação póstuma de suas colunas para jornal, revela outra vez a clareza transcendente de sua linguagem; deliciamo-nos com a precisão de seus vocábulos e sintaxe, ninguém em nossa língua pode disputar-lhe o requisito.
Como todo cronista de jornal, de Nelson Rodrigues a Juremir Machado da Silva, Graciliano escrevia sobre tudo, sobre coisas em que ele era mestre, sobre outras coisas em que nem tanto, mas sua grandeza estilística estava presente para além dos assuntos abordados. E como é corriqueiro nos cronistas, Graciliano, apesar de todo o seu comedimento, não deixava de arriscar palpites no futurismo. É claro que a posteridade veio a confirmar o óbvio, acertava no que entendia, errava no que lhe era estranho, o que vem a ser uma lição nunca apreendida pelos cronistas de sempre. De que Graciliano entendia mesmo? De literatura. Foi contundente e não se enganou ao ver nos críticos literários dos anos 30 do século XX uma mania (que se espalha até hoje) de ver em certas características de superfície uma imitação de Machado de Assis em ficcionistas diversos e muitas vezes dissociados. O mais espantoso é seu artigo sobre Guimarães Rosa. Escrevia Graciliano: “Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando meus ossos começarem a esfarelar-se.” O artigo data de 16.05.1946 e analisa alguns contos de Rosa, onde ele vislumbra embriões de romancista. O romance Grande sertão: veredas saiu em 1956, mas Graciliano, como ele próprio já suspeitava, morreria antes, em 1953.
Se Graciliano foi um profeta literário feliz, errou ao opinar sobre dois fenômenos culturais incipientes em seu tempo, o futebol e o cinema. Numa crônica ele ironiza os jornalistas que tratam de cinema, jornalistas que ele define como “vagabunda pena” ou “sujeito desocupado que deseja ocupar uma coluna de jornal”; os críticos de cinema que vieram depois não foram previstos por Graciliano. E sobre o futebol, Graciliano afirma: “O futebol não pega, tenham certeza”. Errou Graciliano. Mas há uma profunda graça literária e histórica nestes erros.
(Eron Duarte Fagundes — eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br