Uma Pastoral Brasileira

O romancista brasileiro Jose Geraldo Vieira escreveu A tunica e os dados (1947) em seu autoexilio de Marilia, interior paulista, entre janeiro e agosto de 1945

28/04/2021 19:04 Por Eron Duarte Fagundes
Uma Pastoral Brasileira

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O romancista brasileiro José Geraldo Vieira escreveu A túnica e os dados (1947) em seu autoexílio de Marília, interior paulista, entre janeiro e agosto de 1945. Incrustado entre duas expressões máximas da densidade barroca do escritor, A quadragésima porta (1943) e A ladeira da memória (1950), A túnica e os dados adota uma posição de linguagem por via de regra mais simples que o habitual de José Geraldo, com o recolhimento de boa parte de suas metáforas e pondo em cena agora uma gama de personagens onde a erudição passa longe; ainda assim, depois de muitos passos iniciais mais ligados ao cotidiano de todo o mundo, com termos e sintaxes mais diretas e nem tão delirantes, o autor de A mulher que fugiu de Sodoma traz vários desvios refinados daquele universo que sempre foi o escopo de sua arte e que tem atravessado as décadas sob a incompreensão dos estudiosos, dos maiores aos obscuros.

“Há de uma pessoa ficar ali, com ar ausente, reunindo coisas, como Proust em viagem para Balbec?” Se as criaturas trazidas aqui pelo romancista não têm grandes conhecimentos culturais, o narrador de José Geraldo sabe deslocar-se para o panteão de raridades. Senão, que está fazendo Proust ao lado de Jaiminho, um pobre garoto sonhador de interior, e do coronel Rogério, um rico fazendeiro paulista rude como todo o povo? Também lá para diante outro excerto raro em A túnica e os dados: é citado um longo trecho em inglês de Ulysses (1922), do irlandês James Joyce, para reconstituir no romance de 1947 uma cena de barulho de urina e de mictório por trás das paredes. Apesar das aparências, José Geraldo permanece o mesmo em A túnica e os dados: a tensão de sua inventividade está sempre presente. Outro exemplo: um trecho dum romance de Dostoievski, O idiota (1869), que fora traduzido por José Geraldo, é reutilizado em certo momento de A túnica e os dados, alterando nomes das localidades; o narrador, sofisticado, revela este truque ao leitor, a autometalinguagem se erige.

Em termos de experiências com o narrar, A túnica e os dados vale-se, a certa altura, de dois acontecimentos paralelos dispostos em duas colunas lado a lado na mesma página. Uma tentativa de sumultaneísmo narrativo que vai adiante da literatura, busca fazer algo que o cinema experimental do alemão Alexander Kluge chegou a ensaiar. (Aqui devo lembrar que o romancista José Geraldo Vieira e o diretor de cinema Alexander Kluge são dois dos artistas do século XX que mais me interessam, por motivos variados, aproximados e diferentes.) Pois é justamente neste trecho de duas colunas na narrativa que os voos metafóricos, com apóstrofes de todo o gênero, atingem em A túnica e os dados situações de linguagem escassas aqui  e abundantes em outros romances do escritor.

No entanto, o grande nervo narrativo de A túnica e os dados é uma encenação da morte de Cristo, aproximando-se um pouco do teatral e mais ainda do cinematográfico, mas sem descaracterizar a essência narrativa literária de que José Geraldo detém o dom como ninguém entre nós. Passado entre o Domingo de Ramos e o Sábado de Aleluia (os dias de Semana Santa dão títulos aos capítulos), A túnica e os dados é uma pastoral brasileira em que figuras como a do adolescente Jaiminho e do coronel dominador são náufragos dentro da estrutura religiosa da trama. Afastando-se em parte do que ele fizera em suas narrativas mais barrocas (as sofisticações de ambientação e linguagem são substituídas agora por almas mais cruas), José Geraldo vai, todavia, reencontrar-se com seu próprio universo: nalgum instante de elaboração o narrador volta a ser depurado.

Pode-se fazer ressalva à arte deste grande criador num tópico: sua tentativa de fotografar as falas populares em suas orações ou certos sotaques como o português de Portugal (uma espécie de transposição das questões fonéticas para a escrita literária, o que muitas vezes os ficcionistas costumam fazer). Neste aspecto, José Geraldo não tem o hábito de construção: nisto são preferíveis as ingenuidades de baixa poesia do baiano Jorge Amado ao evocar o ambiente do povo, isto para não se falar em inventores ou recriadores revolucionários do ouvido do povo, como o mineiro João Guimarães Rosa e o gaúcho João Simões Lopes Neto. Mas este é um pequeno senão, observado aqui particularmente (e que André Caramuru Aubert já sublinhara no exame de outro livro do autor), que em momento algum deslustra a grandeza duma obra como A túnica e os dados.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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