Uma Pe?a Literaria de Rara Complexidade

A cultura dos Sambaquis parte de varios rumos, uma arqueologia brasileira, a politica brasileira

14/03/2023 12:46 Por Eron Duarte Fagundes
Uma Pe?a Literaria de Rara Complexidade

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Não é todo dia que se topa um romance de tantas exigências na leitura quanto A cultura dos sambaquis (2013; Editora Descaminhos, São Paulo), de André Caramuru Aubert. O livro abre com três epígrafes que dão os sintomas do que se vai ler (em Cemitérios, 2014, de certa maneira o autor repetiria o truque intelectual-narrativo de três epígrafes sintomáticas); a primeira epígrafe, uma frase do pensador brasileiro Paulo Prado, encaminha a própria atmosfera do livro de André, depois vem reflexões esparsas em orações do romancista J. M. Coetzee e um trecho epistolar entre Paulo Duarte e Mario de Andrade.

De chofre, na abertura de A cultura dos sambaquis, o leitor é atravessado pelas introspecções de um narrador em primeira pessoa que na verdade se dirige a uma terceira pessoa. O nome do narrador não é referido. O indivíduo a quem o narrador se dirige é nominado: Maicon. A primeira sentença é crua: “ A diferença entre um chimpanzé e você, Maicon, é de apenas um por cento.” É um vomitório cuja origem só descobriremos pouco a pouco ao longo do livro. No capítulo seguinte deparamos textos que simulam publicações num periódico interiorano chamado “A semana”, as datas vão do fim dos anos 70 aos anos 90, os assuntos variam, personalidades (Martin Luther King, Annette Laming-Emperaire, Bob Marley, Paul Rivet, Astor Piazzola, Paulo Duarte) e naturalmente a arqueologia e os sambaquis. “O que é um sambaqui? A palavra vem do tupi, significando ‘concheiro’ ou ‘monte de conchas’. Ressalte-se que os tupis não construíram sambaquis, que já eram velhos, alguns dos quais muito muito velhos, velhos de milhares de anos, quando os tupis chegaram por aqui há mil e quinhentos anos. Enfim, sambaquis são montes de conchas, em língua tupi, mas não foram criados por tupi.” Como acontece com o narrador que se avoluma para o leitor no trecho que nos introduz na história, também o articulista de “A semana” não é nominado para o leitor. É uma outra voz de narrar. Depois saberemos a conexão entre estas duas vozes.

Após os artigos, um capítulo volta ao narrador inicial. E, no capítulo seguinte, há o centro mesmo da narrativa, o que ilumina tudo o que é possível ser iluminado: uma série de depoimentos que vai basicamente falar duma personagem chamada Celso, sua vida, suas atividades, suas ambiguidades, a forma como ele surgiu numa cidadezinha, apolítico foi arrastado pela política e provavelmente foi desaparecido pela crueldade da política. Aí, nos depoimentos, são várias vozes que ajudam a construir A cultura dos sambaquis. E há uma voz oculta, a do entrevistador, um argentino, amiúde interpelado por um ou outro entrevistado: “E então, você vai me contar, como prometeu, o motivo de estar pesquisando sobre a vida dele?”. Celso, que é motivo das entrevistas, é tanto o ser esquivo da abertura do livro quando o articulista de divagações nos textos do segundo capítulo ali inseridos fazendo as vezes duma publicação cultural; o Celso evocado nas entrevistas, o Celso dos artigos são a mesma personagem mas vozes narrativas diferentes, o que pode gerar também ramificações da mesma personagem. A voz oculta, esta que entrevista, põe diretamente em cena essa personagem escondendo-se atrás da página mas chamada aqui e ali , vai aparecer no texto final; mas é também uma outra voz, uma personagem que se ramifica, entre aquela por trás das entrevistas e a que dá o arremate ao livro. Nesta voz que se esconde, se esconde também um segredo central da narrativa: como tudo no livro, algo destapado aos poucos, nas interligações dos momentos narrativos, como já acontecia em Marcel Proust, mas aqui diferentemente.

A cultura dos sambaquis parte de vários rumos, uma arqueologia brasileira, a política brasileira, as relações espúrias entre o empresariado e os governos no país, certas impossibilidades de que uma criatura como Celso pode ser o emblema, ou o mistério, e às vezes, em muitas meditações pescadas ao longo do livro, se olha no espelho: “Temos em nós como uma epidemia, a síndrome de Gilberto Freyre, de escrever o Grande Livro Explicativo.” As conchas pré-históricas (os sambaquis) esconderiam algo que nos explicaria? O autor por trás das muitas vozes de A cultura dos sambaquis talvez se valha de um certo ceticismo. Mas não elimina a esperança. Ao menos com esta personagem do entrevistador argentino que construiu e, no último movimento do romance, aduz: “e então eu me pergunto se ele poderia me levar, na canoa, até a outra margem.” Pode ser que, na outra margem, se descubra algo que valha a pena.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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