A Raca Como Estetica Literaria

Em Estetica e raca: ensaios sobre a literatura negra (2021) Luiz Mauricio Azevedo propoe um olhar mais complexo que a divisao entre ra?a (ou o social) e estetica

30/05/2022 12:05 Por Eron Duarte Fagundes
A Raca Como Estetica Literaria

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Luiz Mauricio Azevedo traça o nascimento de seu pensamento literário em três pontos de partida que se bifurcam para criar linhas divergentes e concomitantes. São três clássicos de nossas letras: Machado de Assis (Dom Casmurro), Maria Firmina dos Reis (Úrsula) e Lima Barreto (Cemitério dos vivos). Em Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra (2021) Luiz Mauricio propõe um olhar mais complexo que a divisão entre raça (ou o social) e estética; as linhas são mais sinuosas e o leitor depara com uma instância em que o elemento racial na literatura é tanto (e ao mesmo tempo) uma questão estética quanto um compromisso social. A raça é a própria estética: ou um pouco um espelho do que está do lado de fora da página. Dos pontos de partida pioneiros, Luiz Mauricio desce nos textos dos contemporâneos Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Jeferson Tenório. Eu poderia ser bisbilhoteiro se metesse minhas colheres, dizendo que senti falta de José Falero, mais que a inclusão de Itamar Vieira Franco. Luiz Mauricio vai ao estrangeiro de letras negras: a americana Toni Morrison. De terras estranhas, minha falta em Luiz Mauricio: o escritor martinicano Patrick Chamoiseau. Mas o opúsculo do ensaísta, uma obra-prima escondida na província, navega por aspectos da literatura negra: não pretende englobá-la; é ás vezes como um grito: “Já não pretendo fingir. Há tempo de prisão. E há tempo de liberdade.” As frases muitas vezes dilaceram a consciência narrativa (sim, este ensaio tem uma consciência narrativa).

O início de Dom Casmurro traz uma abertura crítica de Luiz Mauricio. “Vivo só, com um criado” lá vai escrito pelos primeiros movimentos do romance de Machado de Assis. Luiz Mauricio anota à luz da personagem machadiana: “A tentação de personificar tudo o que é inanimado é, pois, um sintoma dum sofrimento psíquico comum a muitos seres: capitalismo.” Para começar a elaborar sua teoria materialista negra, Luiz Mauricio desloca a habitual leitura fácil da trama machadiana: “No caso de Dom Casmurro, a concepção de que o adultério era o centro do romance, e de que cabia a nós o papel de detetive conjugal, nos afastou da leitura do romance como uma flagrante luta de classes entre a família de Bentinho e a de Capitu, com amplo desfavorecimento da segunda. Não à toa, a melhor produção sobre o autor é a do marxista Roberto Schwarz, que soube fugir de tal engodo.” A opção por um crítico como Schwarz é um dado. A ausência de negros entre os principais críticos literários brasileiros, apontada por Luiz Mauricio, é outra verve. Tudo aponta para como Machado de Assis foi lido ao longo dos séculos, como se fosse um autor branco. A “ausência de uma teoria materialista negra” aponta para a “facilidade com que Machado de Assis foi transformado em um indivíduo branco”. A literatura feita por negros no Brasil tem vivido numa espécie de “quarto de despejo” (Carolina Maria de Jesus): sua sintaxe não é reconhecida.

Assumindo-se por vezes como um panfleto de natureza estética, o livro de Luiz Mauricio cita um diversionismo de “racismo recreativo” duma professora na infância do próprio Luiz para depois ir à caça de Monteiro Lobato. Voltam os velhos tempos da infância do menino negro no coração do racismo. Para um escritor (e um esteta da estatura de Luiz Mauricio), raça, que é uma questão originalmente social, se converte numa questão estética, intrinsecamente. Contrapondo-se a uma professora recente, o autor anota: “Não tenho o mesmo afeto pelos textos de Monteiro Lobato. E considero sua literatura-infantil uma reunião insuportável de pedagogismo-clássico e flacidez mental.” O adjetivo: insuportável. No entanto, Luiz ama, ou me parece, uma personagem de Lobato: “Às vezes, penso na tia Anastácia criada pelo racista Lobato, que fazia os doces, dominava técnicas culinárias e, às vezes, arriscava uma aventura e outra em busca da proteção dos insuportáveis Pedrinho e Narizinho.” De novo, o adjetivo: insuportáveis. “O texto fala mais do que se gostaria”, argui Luiz Mauricio. A personagem (que é texto) diz muitas vezes mais que o autor (que está talvez atrás do texto). “Personagens são como arquétipos insubordinados, que saem por aí denunciando o que os escritores não querem deixar transparecer, mas precisa ser transparente.” Tia Anastácia como a rebelde negra no decorativo mundo branco da ficção de Lobato, ela maior que seu autor? Áspero, Luiz Mauricio fala das falhas estruturais de uma certa “nova literatura brasileira”: “pretensão e gordura”. Observa sobre esta sua leitura: “Houve quem me acusasse de arrogância intelectual. Houve quem me acusasse de paranaense. Aceito as críticas. Isso, contudo, não muda o problema. Fechar os olhos não faz as críticas desaparecerem.

Diante da inutilidade de que é acusada a literatura, Luiz Mauricio, assumindo a condição de um ensaísta negro de alta estirpe literária, fecha seu desabafo-diatribe profundamente estético trazendo esperança, coragem e liberdade no meio da amargura: “E a literatura, já não tenho dúvidas, é nosso carro veloz: por meio dele podemos finalmente ser pessoas, e pertencer a alguém maior que tudo isso que nos rodeia: a nós mesmos.” Assim posto, o livro de Luiz Mauricio é também a construção duma poética crítica original, onde os conceitos literários vão pondo em cena a história do menino que pulou do sonho de ser Ayrton  Senna para o sonho concreto de dispor da literatura como realização. “Não há nenhum divórcio entre aquele menino e esse crítico”.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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