Submergindo nas Palavras
Extradicao: a Poetica dos Deslocamentos dispensa certos conceitos e poe-nos em contato direto com uma literatura em fusoes
Os signos que habitam os textos de Alessandra Rech em algum lugar provocam o fogo em minha mente de leitor. Não procures estes signos no espaço semântico; o lugar é um não-espaço, fora da lógica, dentro da sensibilidade cognitiva. Estas coisas estranhas, inalcançáveis, sem definição que estão na literatura ou em alguns dos estratos literários voltam a percorrer minhas veias estéticas e emocionais no novo livro de Alessandra, Extradição: a poética dos deslocamentos (2022).
Que livro é este, feito das frases entre mágicas e naturais da escritora, dos ensaios fotográficos que Pepe Pessoa extraiu das fotografias (belamente internadas no texto) que Antonio Valente tirou valendo-se de Alessandra Rech como sua misteriosa modelo? Tem a estrutura duma novela em que a própria autora faz de si uma personagem. Algo próximo do que ocorre numa crônica, como prefere dizer Alessandra. E a escritora caxiense, mais que ninguém, é mestre na arte de pôr em palavras o dia-a-dia sem cair na banalidade ou, vá lá, na capacidade de tirar a banalidade do banal das visões uniformes, estereotipadas. É um ensaio, no sentido verbal-epistemológico, sem deixar de ser poesia em prosa. Jean-Claude Bernardet certa vez usou o termo-expressão autoficção para definir alguns filmes brasileiros quase autorretratos e aludiu à sua própria novela A doença, uma experiência (1995) como um exemplar do gênero. Penso nisto, penso nestas associações para entender Extradição: a poética dos deslocamentos, que em momento algum se confunde com os aspectos de vulgaridade estética em que o abuso da autoficção se tornou na atualidade. Mas, no duro mesmo, que importa definir um livro (uma obra de arte, de maneira geral) em gênero? Isto é para obras menores ou diminuídas; uma aventura de ler como esta de Extradição: a poética dos deslocamentos dispensa certos conceitos e põe-nos em contato direto com uma literatura em fusões.
Recorro à observação —auto-observação— de Alessandra para seguir a compreensão da obra. “Este texto era para ser como os demais que já escrevi, fragmentário, hermético até. Tenho sido, na literatura e na vida, uma cronista.” Era? Nos fragmentos que buscam uma solução para o incompreensível (hermético) há aquele lugar dos signos literários que, disse eu lá atrás, me incendeiam. Tudo parece simples (e é simples), tudo se torna complexo num texto de Alessandra Rech.
Há uma foto em que Alessandra, numa expressão de rara profundidade emocional, sobraçando uma boneca, mãos juntas dos lábios, olhos ao mesmo tempo serenos e inquietos, e o texto que acompanha a foto (que já se pudera ler algumas páginas antes) diz: “Deslocar-se, no sentido afetivo, algumas vezes é perder os próprios referenciais.” O périplo exposto em Extradição: a poética dos deslocamentos é interior, ainda quando cruze geografias exteriores, passando por Recife, lugares de Minas Gerais, a Casa do Sol de Hilda Hilst em Campinas, evocações de Caxias do Sul. Este périplo interno de Alessandra Rech —como autora, narradora e personagem— é atravessado por uma história de amor, sutil, sinuosa, o mais das vezes velada; mas esta história de amor, que pode estar entre as coisas que deflagraram o processo de escrito, é uma história de amor para além da história de amor, parece um instante duma metafísica (e poética) muito particular.
Extradição: entregar alguém para julgamento. Que se entrega em Extradição: a poética dos deslocamentos? Os sentimentos convertidos em literatura: liberar não para um julgamento matemático, que isto não interessa à arte, mas à percepção pelas sensibilidades. O que está ali, a partir do ato de extraditar (o escritor manda para fora de si sua “ventania das ideias”), é o que vem depois: deslocar-se como essência poética. “Esses momentos de viagem em que os sentidos ficam à disposição do inefável me habitam para sempre.” O que cabe aqui, nesta nota de pé de página que é um artigo crítico, é ir com Alessandra, aspirando o inefável que nasce de todas as viagens, as interiores certamente e mesmo as exteriores que são logo mudadas em interiores.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br