A Leitura Rítimica em Duras
O Amante é um conjunto de palavras em que você, lendo, deve sentir os sons das palavras
A francesa Marguerite Duras tem o senso rítmico da construção das frases para impor a este ouvido surdo do leitor (o sujeito que se sente o ritmo sonoro pelos olhos) praticamente uma música em palavras. É quase como se lêssemos em voz alta: mesmo sem abrir a boca. Duras opera por reiterações, sabemos todos desde o texto que ela escreveu para Hiroshima, meu amor (1958), o clássico cinematográfico de Alain Resnais. “Tu viste tudo em Hiroshima” e “tu nada viste em Hiroshima” são as frases que os interlocutores alternam em cena de maneira insistente. A ensaísta norte-americana Pauline Kael se irritou com este processo. “Jamais entendi por que os escritores acham que a repetição cria uma atmosfera lírica ou aumenta a profundidade do significado”, anota Kael. E depois, citando-se apenas como uma personagem de suas próprias divagações, a crítica americana se exaspera: “Tudo bem, já entendi da primeira vez, vamos em frente com isso.” Insensibilidade de Pauline para as coisas francesas? Não estamos falando de um espectador eventual ou destreinado para o pensamento cinematográfico. O que ocorre ali é simplesmente um dos mais notáveis conflitos em matéria de percepção estética.
Parto deste contraponto entre dois grandes espíritos do século XX, Pauline Kael e Marguerite Duras, dois cérebros femininos extraordinários que souberam lidar com a palavra como poucos, mesmo que para fins diversos em sua aparência, para dizer que a base da excelência duma novela como O amante (L’amant; 1984) é este amor de Duras à reiteração, à repetição de palavras e expressões e situações e construções sintáticas que se vão dispondo na página quase como se uma mão invisível como uma brisa movesse tudo. Aparentemente é um livro simples, sem as experimentações e exigências que Duras costumava exibir em seus livros e filmes; Índia song (1974), um filme realizado dez anos da escritura de O amante, é um exemplar do difícil contato da arte de Duras com o grande público; perto de Índia song o que fez Resnais com o texto da grande escritora tem muito mais saída comercial. Ao contrário, O amante acabou encontrando o grande número: por esta aparência de simplicidade das frases e por este perfume de escândalo (algo bem francês) que envolve uma jovem branca no início da adolescência e um madurão amarelo. Este encontro da literatura de Duras com uma plateia mais ampla perturbou os analistas de sua escrita. No entanto, é bom ressaltar que a simplicidade de O amante se abre para cavernas complexas do ser, a partir de suas flutuações narrativas, e que as descrições sexuais trazidas por Duras têm uma intensidade metafórica ou mesmo simbólica que nasce deste próprio processo de reiterar criativamente os episódios narrativos, assim como faz com as construções narrativas. Como na música, que o texto de Duras emula, os motivos tornam em momentos diferentes para completar o entendimento e a percepção.
Sabe-se em parte que a história contada em O amante é autobiográfica. Como sua protagonista, Duras foi deflorada por um chinês rico de Saigon aos quinze anos e meio. Será verdade? No corpo de O amante, o leitor dá com esta divagação:
“A história de minha vida não existe. Isto não existe. Não há jamais um centro. Sem um caminho, sem uma linha. Há vastos lugares onde se chega a crer que havia alguém ali, o que não é verdade, não havia ninguém ali.” (L’histoire de ma vie n’existe pas. Ça n’existe pas. Il n’y a jamais de centre. Pas de chemin, pas de ligne. Il y a de vastes endroits où l’on fait croire qu’il y avait quelqu’un, ce n’est pas vrai il n’y avait personne.”)
Quer dizer: a autobiografia em literatura é um pouco uma ilusão, cremos estar lá no vasto lugar, mas na verdade não estamos. O que é mais que uma ilusão é o processo da escrita em Duras.
Desde o início uma imagem, arrolada como uma linguagem vagarosa e comum que aos poucos se torna incomum pelo próprio ritmo de sedimentar esta linguagem aparentemente de todos porém muito particular. O início:
“Um dia, eu já estava velha, no saguão de um local público, um homem veio em minha direção. Ele se apresentou e me disse: ‘Eu conheço você desde sempre. Todo mundo diz que você era bela quando era jovem, eu vim para lhe dizer que para mim eu acho você mais bela agora que quando você era jovem, eu amava menos seu rosto de jovem mulher que este que você tem agora, devastado.” (“Un jour, j’étais âgée déjà,dans le hall d’un lieu public, un home est venu vers moi. Il s’est fait connaître et il m’a dit ‘Je vous connais depuis toujours. Tout le monde dit que vous étiez belle lorsque vous étiez jeune, je suis venu pour vous dire que pour moi je vous trouve plus belle maintenant que lorsque vous étiez jeune, j’aimais moins votre visage de jeune femme que celui que vous avez maintenant, dévasté”).
O que move a narradora de O amante para escrever seu relato é a imagem do reencontro com o amante chinês que lhe diz amar seu semblante mais agora, devastado, do que na juventude cuja beleza é apontada pela maioria. É sua imagem mais pessoal. “Eu penso frequentemente nesta imagem que somente eu ainda vejo e da qual jamais falei.” (“Je pense souvent à cette image que je suis seule à voir encore et dont je n’ai jamais parle.”). É como se somente ela, a narradora, ainda pudesse ver o que ela narra: a memória das demais personagens se perdeu nos obscuros do tempo. Sua história talvez não exista, como ela chega a evocar. A história que ela conta é uma bifurcação de memórias confusas: como qualquer memória. “A ambiguidade determinante da imagem, esta está no chapéu.” (“L’ambiguité determinante de l’image, elle est dans ce chapeau.”). Como poucas memórias na vida da literatura, topa um padrão de escrever cuja felicidade é ditada pelo ritmo encenado pela edificação de palavras de Duras. E a autora converte o reiterativo discurso inicial, com o jogo de tempo de verbo e conjunções, numa das mais belas declarações de amor da história dos livros. Você é mais bela agora, devastada pela idade, do que antes, na juventude, eu amava menos seu rosto de jovem mulher do que o que você tem agora, o amor-menos do passado é compensado em seu aspecto mais negativo (“menos”) pela intensidade de um amor que anos depois não foi apagado pelo tempo.
Não somente os episódios narrados tergiversam entre si, bifurcando-se, como os próprios tempos verbais utilizados se amalgamam de forma aparentemente aleatória porém com grande precisão. As coisas do passado surgem como se estivessem sendo documentadas no presente. O uso amiudado do presente histórico (presentificação da narrativa) é mais do que isto, uma tentativa de fazer o relato tornar no tempo, dando a impressão de que a narradora, sentada a uma mesa intemporal, anotasse tudo no momento mesmo em que tudo acontece.
“Que eu lhes diga ainda, eu tenho quinze anos e meio.
É a passagem duma barca no Mekong.
A imagem dura toda a travessia do rio.”
(“Que je vous dise encore, j’ai quinze ans et demi.
C’est le passage d’un bac sur le Mekong.
L’image dure pendant toute la traversée du fleuve.”)
É como se a cineasta Duras quisesse fazer com que sua escrita fosse como o cinema: as coisas parecem acontecer no instante presente, mesmo pertencendo a um fundo passado. O que vemos no texto é quase uma imagem.
A profusão de figuras da memória e do esquecimento se espalham ao largo das evocações de O amante, onde o amante chinês é um nervo dramático mas a mãe é a personagem que centraliza os liames daquilo que a narradora lembra (lembremos ainda: a narradora ora é um “je”, primeira pessoa, ora é um “elle” ou “la petite”, uma terceira pessoa em disfarce). Jogos do que está depositado no cérebro.
“Agora eu já não os amo. Já não sei se os amei. Eu os abandonei. Já não tenho na cabeça o perfume de sua pele nem nos meus olhos a cor dos seus. Não lembro mais a voz, salvo às vezes desta que vem doce com a fadiga da noite. O riso, eu já não o ouço, nem o riso, nem os gritos. Acabou, já não lembro. Será porque eu escrevo sobre ela tão facilmente agora, longamente, distendidamente, ela se terá tornado uma escritura corrente?”
(“Maintenant je ne les aime plus. Je ne sais plus si les ai aimés. Je les ai quittés. Je n’ai plus dans ma tête le parfum de sa peau ni dans mes yeux la couleur de ses yeux. Je ne me souviens plus de la voix, sauf parfois de celle de la douceur avec la fadigue du soir. Le rire, je ne l’entens plus, ni le rire, ni les cris. C’est fini, je ne souviens plus. C’est pourquoi j’en écris si facile d’elle maintenant, si long, si étiré, elle est devenue écriture courante.” É um trecho que, malgrado sua simplicidade e reiterações, se faz particularmente complicado de transpor do francês; tem alguma coisa que escapa em suas variações de tempo e construções verbais ao ímpeto tradutor).
O sexo, transcendendo, ocupa uma certa eminência na narrativa de O amante. A colega da protagonista no liceu é algo tão importante quanto o amante. Tanto que a narradora faz uma transferência mental do corpo da colega para os braços do amante chinês. Funde-se a narradora, o amante e a colega numa mesma voluptuosidade de palavras. É uma metempsicose sexual.
“Eu estou extenuada do desejo de Hélène Lagonelle.
Eu estou extenuada do desejo.
Eu quero levar comigo Hélène Lagonelle, lá onde cada noite, os olhos cerrados, eu me permito a voluptuosidade que faz gritar. Eu gostaria de dar Hélène Lagonelle a este homem que faz isto comigo para que ele faça por seu turno com ela. Isto em minha presença, que ela o faça segundo meu desejo, que ela se dê lá onde eu me dou. Seria pelos meandros do corpo de Hélène Lagonelle, pela travessia de seu corpo que o orgasmo me chegaria dele, agora definitivo.”
(“Je suis extenuée du désir d’Hélène Lagonelle.
Je suis extenuée du désir.
Je veux emmener avec moi Hélène Lagonelle, là où chaque soir, les yeux clos, je me fais donner la jouissance qui fait crier. Je voudrais donner Hélène Lagonelle à cet homme qui fait ça sur moi pour qu’il le fasse à son tour sur elle. Ceci en ma présence, qu’elle le fasse selon mon désir, qu’elle se donne là où moi je me donne. Ce serait par le détour du corps d’Hélène Lagonelle, par la traversée de son corps que la jouissance m’arriverait de lui, alors defintive.”)
Vemos com frequência no texto de O amante emanações de sensíveis relações entre a natureza e as personagens, personagens que nada mais são do que seres humanos em palavras.
“O crepúsculo caía na mesma hora o ano inteiro. Era breve, quase brutal. Na estação das chuvas, durante semanas, não se via o céu, ele estava preso num nevoeiro uniforme que até a luz da lua não conseguia atravessar. Na estação seca, ao contrário, o céu se desnudava, descoberto em sua totalidade, azul. Mesmo as noites sem lua eram iluminadas. E as sombras eram parelhamente desenhadas sobre os solos, as águas, as estradas, as paredes.”
(“Le crépuscule tombait à la même heure toute l’année. Il était très court, presque brutal. À la saison des pluies, pendant des semaines, on ne voyait pas le ciel, il était pris dans un brouillard uniforme que même la lumière de la lune ne traversait pas. En saison sèche par contre le ciel était nu, découvert dans sa totalité, cru. Même les nuits sans lune étaient illuminées. Et les ombres pareillement desinées sur les sols, les eaux, les routes, les murs.”)
Mais que tudo, O amante é um conjunto de palavras em que você, lendo, deve sentir os sons das palavras, mesmo que ninguém, nem mesmo você, as esteja pronunciando.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br