O Mundo Sujo de Mariel no Cinema
Eu Matei Lucio Flavio mostrou apaixonadamente o universo da tortura numa sociedade ainda dilacerada pelas evocacoes da tortura nos subterraneos da ditadura militar
Eu matei Lúcio Flávio (1979), de Antônio Calmon, é o ancestral de Tropa de elite (2007), de José Padilha. Há inclusive um diálogo a uma mesa de bar onde um policial refere a outro a formação duma “tropa de elite” (é bem esta a expressão em cena) para eliminar marginais, limpar a violência “assustadora” (diziam; imagine-se a visão e os adjetivos destas pessoas na sociedade de hoje) do Rio de Janeiro do final dos anos 70.
Eu matei Lúcio Flávio mostrou apaixonadamente o universo da tortura numa sociedade ainda dilacerada pelas evocações da tortura nos subterrâneos da ditadura militar. Calmon, o diretor, é o algoz da imagem: utiliza abundantemente o sangue e o sexo para impressionar os sentidos do espectador, tudo embalado pela musicalidade fácil e melodramática das canções de Roberto Carlos. Eu matei Lúcio Flávio causou um certo mal-estar em seu tempo, mas isto não impediu que um crítico da estatura de Jean-Claude Bernardet o considerasse um “poema erótico sado-masoquista”. Calmon na linha do italiano Píer Paolo Pasolini? Quase vinte anos depois, esta assertiva parece um exagero. Eu matei Lúcio Flávio é um filme canastrão, precário, embora certos setores críticos o tenham por clássico de nosso cinema. Digere muito mal elementos do filme policial americano e mistura nesta alimentação uma salada que vem diretamente da pornochanchanda brasileira; o que vemos é um vômito que, por sua excentricidade deslocada no tempo (olha só como se filmava então!), desperta a curiosidade, mas dificilmente vai apaixonar o espectador de hoje.
A desfaçatez de Jece Valadão como o policial Mariel está hoje esmaecida no impacto que teve na época. Monique Lafond tem um desempenho bastante trivial e não logra esbofetear-nos com a vulgaridade de sua personagem: sou muito mais a hispânica Eva Mendes que, no início de Os donos da noite (2007), de James Gray, devora os pintos da platéia masculina.
Talvez a utilização da caveira como o símbolo da facção policial que higieniza a sociedade jogando no ralo os elementos-excremento, seja o melhor achado visual de Eu matei Lúcio Flávio, aquele que pode ter sobrevivido aos anos.
Tropa de elite, um bom e perturbador filme brasileiro da atualidade, teve um ancestral desfigurado pelos anos. Na verdade, Eu matei Lúcio Flávio me pareceu ruim e falho em 1979 quando o vi; mas formalmente ele tinha sua sedução, que agora não se sustenta. Tropa de elite está mais ao lado da polícia contra o marginal numa época de violência generalizada em que aceitar os métodos violentos policiais parecem mais toleráveis aos olhos dos cidadãos; qualificar tais filmes de fascistas não resolve nada, como já asseverava Bernardet num artigo de 1979. Mas resta uma dúvida: se o que torna inquebrantável a narrativa de Tropa de elite é sua perícia formal, não poderia o filme ser descaracterizado pelos anos como ocorreu a Eu matei Lúcio Flávio, por usar excessivamente recursos estilísticos datados do cinema?
E SE SOMOS TODOS FASCISTAS?
José Padilha é um diretor de grande habilidade para encenar as ações cinematográficas nos moldes daquelas definidas pela linguagem do cinema comercial americano. Ele é um caso raro no cinema brasileiro: não tropeça nas frases fílmicas e está revestido de um brilho narrativo (narrativo do filme de ação) incomum. Mas não é um alienado, não é alguém interessado em entreter simplesmente o público. Padilha está interessado em compreender os mecanismos da sociedade. Como acontecia com o greco-francês Constantin Costa-Gavras em determinada época, Padilha se vale dos exercícios turbulentos do cinema comercial para expor uma realidade social e política. Padilha é um diretor de ação e um cineasta social: esta dupla face convive bem em seu cinema, cujo primeiro rebento foi Ônibus 174 (2002), onde o realizador transformava um documentário num filme de ação que nunca deixava de ser também um documentário.
O segundo filme de Padilha, Tropa de elite (2007), é um filme de ação que o cineasta transforma muitas vezes num documentário que nunca deixa de ser em sua essência um filme de ação. Mas não é um filme de ação vazio, pura linguagem. É uma ação voltada para a consciência criminosa da sociedade de hoje. A sociedade é formada também pelos espectadores que assistem a Tropa de elite. No fundo o espectador é o verdadeiro bandido que é alvo do narrador de Padilha; este narrador é uma virulenta opereta de linguagem que quer simbolizar a figura fascistoide e impositiva do protagonista, um policial, o capitão Nascimento. No final do filme quando o policial vingativo que aponta sua potente arma para estourar a cabeça do traficante Baiano, esta arma está também apontada para a cabeça do espectador, entre a cabeça do espectador e a cabeça de baiano há uma associação que o filme-policial de Padilha pretende explodir.
Tropa de elite é um filme perverso e insolúvel. Mostra o nível a que chegou o fascismo de todos nós. Em Baixio das bestas (2007), do pernambucano Cláudio Assis, a animalidade está no sertão; em Tropa de elite os animais são nossos companheiros urbanos, e também nós, que nos afogamos no turbilhão de balas de Tropa de elite, um filme que perigosamente nos provoca a pegar em armas. Talvez não haja mesmo outra solução, talvez a violência do mundo seja irreversível; somos inevitavelmente fascistas e o cinema nos pegou no contrapé.
“A primeira vez que vi Eu matei Lúcio Flávio, só senti nojo e repulsa. A figura do policial feito santinho que salva criancinhas e chora no túmulo de toxicômanas; o atleta chamado para salvar uma sociedade apresentada como decadente, justificando qualquer forma de violência e arbítrio policial: difícil de engolir. Filmes de Jece Valadão, Carlos Imperial, Toni Vieira já deram imagens positivas da polícia, mas certamente nunca de modo tão descarado, tão programático como Eu matei Lúcio Flávio, um filme militantemente de extrema-direita.
Imagens insistentes, situações, o tom do filme não me saíam da cabeça. Amava o filme. Isso não podia nem queria negar. Impossível resolver a contradição na base de ‘o diretor tem talento, mas discordo de sua mensagem’. Porque é uma coisa só. Esse filme e suas imagens não existem sem o elogio à polícia. Como é uma coisa só a minha reação de nojo e fascínio.” (Jean-Claude Bernardet, in Piranhas no mar de rosas, livro de 1982).
Tropa de elite estaria ressuscitando a discussão da validade de filmar o ponto de vista do policial que o filme de Calmon de 1979 punha violentamente em xeque? Padilha não conta com a desfaçatez do falecido Jece Valadão (impecável no filme de Calmon) para uma mensagem declaradamente policialesca. E os tempos são outros: a ousadia de Calmon em defender os torturadores numa época em que ainda estávamos sob a ditadura militar, e vozes libertárias clamavam pela abertura política mais ampla.
Padilha não se enquadra propriamente no conceito de reacionário de direita, embora Tropa de elite seja um filme mais à direita, captando certos sentimentos sociais muito presentes. A sequência do treinamento dos policiais, a voz autoritária e gritona do capitão, a intransigência com os cochilos humanos dos subordinados, a exposição do indivíduo à suprema crueldade como comer à maneira de cães a comida despejada no chão. É uma sequência inspirada na primeira parte de Nascido para matar (1987), do norte-americano Stanley Kubrick. Por trás da cena de Kubrick, uma cabeça crítica antibelicista. A imagem de Padilha é diferente, documenta a cena como se estivesse se lambuzando da loucura toda. Um filme belo e nojento?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br