A Paisagem por Testemunha

O mundo de Paisagem na Neblina eh um mundo de tempo e espaco novos para o cinema

21/01/2022 21:17 Por Eron Duarte Fagundes
A Paisagem por Testemunha

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Pré-escrito: O texto que segue eu o escrevi em 19.05.1992, quando vi (primeira e única vez, até agora) o filme de Angelopoulos. É um entre muitos textos de arquivo de que disponho ora como textos, ora como anotações de memória escrita; somente o mostrei a alguns amigos em seu tempo; mas eu não tinha onde o publicar. Agora o resgato do limbo de meus casacos mortos, para este canto da internet.

 

 

 

A Paisagem por Testemunha

 

 

Cabe dizer, antes de qualquer coisa, que o ritmo cinematográfico de Paisagem na neblina (1988), filme do cineasta grego Theo Angelopoulos, é original; e esta originalidade se alicerça basicamente num andamento narrativo em que a paisagem é uma espécie de cenário-personagem que domina todo o plano e o engole, engolfando as pessoas que se atrevem a desafiar o poderio da imagem. Todos somos abraçados, com alguma ternura e outro tanto de prepotência visual, por esta imagem-cinema: os espectadores, as personagens. Esta obsessão pela natureza muita vez paralisa os seres humanos, colocados como elementos de cenário; esta paralisia transforma as personagens em ícones captados num gesto qualquer do cotidiano enquanto a neve (natural) cai, e hipnotiza o espectador que se vê assim como a criatura na tela, imóvel diante da beleza imponente duma curva de estrada sobranceiramente circundada por um paredão de terra e pedra.

Sem embargo de seu intenso simbolismo e de sua grandeza pictórica, Paisagem na neblina é uma obra extremamente simples, um retorno ao primitivismo formal e emocional do cinema. Ela se opõe ao profissionalismo técnico e retumbante dum filme como Cabo do medo (1991), do americano Martin Scorsese. Angelopoulos realiza uma narrativa semi-amadorística onde tudo tem um sabor “pré”, sobretudo pré-espetáculo.

Um filme que, aparentemente, foge à tradição cinematográfica, nos remete a algumas associações estéticas. A trajetória duma infância perdida (aqui, uma menina e seu pequenino irmão que caem na estrada até a Alemanha em busca do pai) já teve sua marca no cinema em cenas memoráveis como aquelas de Os incompreendidos (1959), de François Truffaut, e Cria cuervos (1975), de Carlos Saura. A fulgurante cena (mística e simbólica) duma mão esculpida que aparece na superfície das águas e depois paira sobre a cidade erguida por um helicóptero nos transporta para aquela sequência de A doce vida (1960), de Federico Fellini, em que um helicóptero sobrevoa Roma conduzindo uma imagem de Cristo. São associações que faço por puro prazer cinemaníaco; e de maneira alguma desfazem a personalidade própria deste que é um dos filmes mais reveladores de nosso tempo.

* * *

Da simplicidade duma história de busca paterna, com as evidentes implicações psicanalíticas que o tema poderia gerar à guisa de poço sem fundo, Angelopoulos realiza algo que se reveste duma simbologia despojada mas intensa, secreta em seus múltiplos significados mas transparente em sua estética pictórica. O mundo de Paisagem na neblina é um mundo de tempo e espaço novos para o cinema; e dentro deste tempo e deste espaço criados pelo cineasta o itinerário dos dois jovens protagonistas mostra, quase imperceptivelmente, diante de imagens singelas e abertas, as desventuras duma sociedade amarga e desorientada. O rumo indeciso dos protagonistas é o rumo de muitos de nós, atirados numa época perdida no tempo e no espaço. Quem se importa por nossos mesquinhos destinos quando o universo é tão imenso? Como ocorre com os dois irmãos do filme mergulhados na paisagem infinda da estrada.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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