Hepatite
Uma revisao de Proust
O texto que segue, eu o escrevi em 08.09.85. Era no meio de minhas leituras proustianas naqueles anos. Leituras a partir das traduções brasileiras de Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Lúcia Miguel Pereira e outros. Em anos mais recentes tenho relido Proust, agora no original francês. Mas é bom registrar este dado antigo: como eu lia Proust em 1985, aos trinta anos de idade, uma leitura misturada com tantas outras e uma já frenética frequência às salas de cinema. Segundo meu amigo Renato Pedroso Júnior, cinéfilo companheiro daqueles anos, eu era um espectador literário, o que eu queria ver era “livro na tela”. Segundo amigos mais ligados à literatura, eu estava deformando minha visão literária pelas simplificações duma arte menor, o cinema. Talvez essas discussões hoje nem façam mais sentido: discussões de época. Onde entra Proust neste processo? (Eron Duarte Fagundes, maio/2023)
HEPATITE
(Texto escrito em 08.09.1985)
O grande crítico de cinema Tuio Becker, numa conversa sobre o filme proustiano do alemão Volker Schlöndorff, nas dependências do Instituto Goethe, me revelou que nunca leu Marcel Proust, a não ser numa tradução portuguesa de Um amor de Swann, há muitos anos. E disse-me mais: a esta altura dos acontecimentos, ele só se aventuraria pelo universo do grande escritor francês se pegasse uma hepatite e caísse de cama. Lembrei-lhe que, segundo contam, Proust escrevia deitado.
Ler Proust é penetrar numa vertigem narrativa. Agora, tendo completado há pouco trinta anos, chego ao quarto livro do romance-rio Em busca do tempo perdido: é Sodoma e Gomorra, onde se torna cada vez mais impressionante a vitalidade rítmica mantida por Proust, a despeito de girar eternamente dentro de um mesmo universo, doentio, obsessivo, danadamente cíclico.
Marcel Proust é um viciado na arte de escrever, poucos exteriorizaram como ele esta tendência do artista para os abismos a que se referia Thomas Mann. Escrever é uma doença, uma danação; e a qualidade demoníaca, viciada do estilo de Proust topa no assunto de Sodoma e Gomorra a mais perfeita equivalência. A problemática que obsessiona Proust, neste livro, é a questão dos homens-mulheres: o observador-protagonista, que é tecnicamente uma das mais originais criações do gênio-proustiano, vê com curiosidade e espanto o relacionamento do Barão de Charlus com o jovem músico Morel; mas a grande tragédia da sexualidade surge quando o observador-protagonista descobre, lentamente (indícios que pontuam a narrativa, para explodir nas amargas revelações das últimas páginas), a atração de Albertina por mulheres; ainda assim, se casará com Albertina, e apesar de tudo, e apesar de o amor (contado em seu esplendor em À sombra das raparigas em flor) já ter morrido. Filho da boa educação burguesa da França, o observador-protagonista não resiste ao sobressalto que este fato da sexualidade de Albertina, sua amada, lhe causa.
Há muitas citações balzaquianas que se espalham magistralmente pelas páginas de Sodoma e Gomorra. Dir-se-ia que Marcel Proust retomou o mundo de Honoré de Balzac e o desancou; fez uma releitura crítica da ficção de seu mestre, desajustou todas as peças, levou a loucura dos ambiciosos balzaquianos a uma exasperação do pedantismo. Todavia, a citação que mais vem a pelo em face do tema central do livro é a que insinua, na argumentação construída por Proust em Sodoma e Gomorra, sexualidade na relação de dominação e submissão entre Carlos Herrera e Luciano de Rubempré em Esplendores e misérias das cortesãs. Proust lança sua pista interpretativa. A engenhosa observação proustiana revela sua obsessão com o assunto.
Proust não logra ver calmamente o sexo, seja ele entre homem e mulher ou mais ainda entre pessoas do mesmo sexo, no que é movido por sua educação burguesa. Assusta-se, perturba-se, há uma carga dramática ausente de outros momentos cronísticos de seu romance. Talvez um pouco da conduta sexual do escritor marcou todo o seu estilo de escrever; não somente esta conduta, mas também sua reação trágica e doentia a esta conduta. Enquanto em André Gide as características sexuais geram uma ficção libertária, faceiramente vesga e amoral, em Marcel Proust parece que estamos diante de uma espécie de doença, “genial”, “canceroso” (termos usados pelo argentino Ernesto Sabato ao aludir ao processo literário proustiano). Portanto, ninguém pode reclamar que Tuio Becker prefira ler Proust deitado e com hepatite.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br