Os Cabelos Apontam Para o Filme

A primeira morte de Joana em momento algum faz concessoes faceis ao modernoso.

20/08/2023 03:32 Por Eron Duarte Fagundes
Os Cabelos Apontam Para o Filme

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A câmara da diretora Cristiane Oliveira começa a narrativa de A primeira morte de Joana (2021) a bordo de um veículo em movimento. Posta atrás duma garota que está à janela do carro observando o deslocamento da paisagem pelo artifício de um travelling (a câmara se movimenta junto com o veículo), a máquina de filmar dá a ver ao espectador, incialmente, só os cabelos loiros da menina, durante algum tempo, na lentidão de movimentos formais do filme que contrasta com a ligeireza da marcha do carro; depois, lentamente, a garota vira a cabeça e vemos e perfil de seu rosto. Quando o carro estaciona, um homem, que está na direção do veículo, acaricia a jovem: é seu pai. Na sequência seguinte, a menina está num velório. Logo sabemos que é sua tia-avó. E nas sequências que vêm, o filme vai debruçar-se sobre a persona de Joana, a adolescente de treze anos, suas descobertas do mundo a partir das relações com suas colegas de aula, seus professores, sua mãe, sua avó e as evocações da tia-avó que nunca casou nem teria tido namorado. Os cabelos de Joana que na primeira cena ocultam o rosto da personagem têm uma presença forte na imagem, apontando para o próprio âmago do filme: ambientado numa região interiorana gaúcha de colonização alemã, A primeira noite de Joana adota a profundidade para falar de suas criaturas e de seus temas, uma profundidade que se materializa no rigor plástico, feito de planos que parecem medidos, vagarosos e dotados de tensão interior da imagem.

Como ocorria em seu filme anterior, Mulher do pai (2016), é uma morte que de cara introduz a realidade dramática da encenação e sua simbologia. A morte da tia-avó percorre a mente de Joana e os significados desta mente. Intrigada com a informação de que a tia-avó nunca tivera namorado (morrera virgem?), Joana, uma adolescente do século XXI que se aproxima do bombardeio sexual de nossa época  hesitante mas curiosa, compara o véu que esconde o erótico na tia-avó com a voluptuosidade de sua avó (há até uma cena de sexo desta avó espiada pela garota, duma fresta), vive tumultuada e ignorada de sua própria sexualidade. Um ser em mutação construído pela cineasta com riqueza cinematográfica, Joana é um pouco o que diz o próprio título do filme, a morte da menina para fazer sua ressurreição nos caminhos duma mulher.

Como já sabem os que veem os filmes de Cristiane, sua direção de atores é um esplendor estético. As jovens Leticia Kacperski e Isabella Bressane são dirigidas de maneira original, longe do naturalismo das falas quanto dos artifícios pedantes; é uma outra coisa o que faz a realizadora com seus intérpretes, aí incluindo-se todo o elenco, caracterizado pela sensibilidade da própria narrativa.

O encontro das imagens finais entre Joana e sua amiga Carol, no cenário grandiloquente dum parque eólico, fecha o trajeto cujos guias eram os cabelos soltos ao vento, num carro em movimento, desde as primeiras imagens. Recheado de coisas mais epidérmicas, como o machismo (uma professora recrimina a Joana um ato de agressividade contra um colega, afirmando que ela agiu como um guri) e as transformações histórico-morais complexas (o nascimento do desejo em tentáculos diferentes duma garota para outra), A primeira morte de Joana em momento algum faz concessões fáceis ao modernoso.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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