O Cinema ao Redor da Memoria

Num relato enviesado, Kleber fala a certa altura que uma parte da cinefilia diz da sala de cinema como um templo

29/10/2023 11:48 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema ao Redor da Memoria

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A voz-over costura as imagens em retalhos de Retratos fantasmas (2023), o novo filme de Kleber Mendonça Filho. Esta voz-over é a voz do próprio Kleber, que fala de sua vida no Recife, a vida familiar, a paixão pelo cinema, como tudo isto determinou sua vocação de cineasta. Há imagens de arquivo, há imagens atuais, há o texto-over que junta uma coisa e outra e vai transformando o documentário num ensaio. O documentário trata de um tempo de frequência a salas de cinema. O ensaio investiga uma cidade e um universo de pessoas centrado muito na visão de filmes. As imagens são documentais; a voz é ensaística. Kleber parte de si mesmo para  escavar o estudo duma sociedade; de maneira simples, fazendo em parte a crônica de suas vivências, o realizador, com lenta precisão, opera a metamorfose de Retratos fantasmas num afresco em que o cinema (o cinema em geral, o cinema da cabeça de Kleber, o cinema da cabeça de todos nós) se põe ao redor da memória. O cinema (a imagem em movimento acompanhada do som) como a materialização da memória: o instante perpetuado, eis o cinema.

Retratos fantasmas inicia falando dum apartamento que foi o centro de outros trabalhos do diretor, ali referidos, entre eles Aquarius (2016), que aludia à especulação imobiliária e traz Sônia Braga como intérprete e uma estrela clássica do cinema brasileiro. Segundo Kleber afirma na introdução ao livro Três roteiros (2020), a personagem de Sônia foi basicamente a projeção da memória da mãe do cineasta, Joselice Jucá. Esta mãe aparece como o ponto de partida das reflexões mnemônicas de Retratos fantasmas. Joselice, a mãe, foi historiadora e pesquisadora. Morreu aos 54 anos. Há fotos dela no documentário (ou ensaio), uma delas Kleber bem jovem abraçando-a. E um vídeo em que ela dá uma entrevista, um vídeo descoberto há pouco por Kleber e incluído com senso de montagem na costura edificada pela voz-over. Os “retratos fantasmas” partem desta mãe, que, sim, com o recuo dos anos passados, vira mais uma estranha fantasmagoria, como os cenários antigos da cidade agora destruídos.

Ao utilizar velhos filmes arquivados e os digitalizar para os novos tempos, o olhar cinematográfico de Kleber percebe certas mutações da imagem, como se fossem mensagens cifradas, algo místico e mágico em que às vezes, ou habitualmente, a natureza do cinema mergulha. A sequência final é um dos muitos achados desta realização onde, ocultando qualquer ambição, vai mais longe do que em seus trabalhos anteriores (O som ao redor, 2012; Aquarius, 2016; Bacurau, 2019): é a única cena (exceção da foto com a mãe) em que o diretor-narrador aparece diante da câmara; Kleber está a bordo dum carro de aplicativo, conversa com o motorista num exercício de cotidianidade da fala filmada, este motorista diz que às vezes se torna invisível, os movimentos de carro filmados de fora alternam claros e escuros que aqui e ali criam a ilusão de invisibilidade para o homem que se dizia invisível; Kleber retira seu filme do espaço documental mas não o joga propriamente nos braços ficcionais, o que faz mesmo, sutil e profundamente, sem alterar a simplicidade original, é um ensaio sobre o comportamento da imagem em cinema, a capacidade que tem a era da imagem de tornar o homem comum invisível.

Num relato enviesado, Kleber fala a certa altura que uma parte da cinefilia diz da sala de cinema como um templo. Observa curioso a expressão “ver Glauber de joelhos”. O cinema como uma religião: igrejas e espíritos. Da metáfora estética o realizador-narrador salta para uma realidade, para o concreto: as salas de cinema fechadas transformadas em templos evangélicos, no Brasil. Pode haver algo de aproximação entre a arte e a religião? Um espírito, um fantasma, uma atmosfera coletiva? Retratos fantasmas vai pôr esta questão de maneira inquietante para o observador crítico.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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