O Fato Literario: Annie Erneaux
Premios, sabemos, nao chancelam esteticamente uma obra
Faz tempo que Annie Erneaux é uma das penas literárias mais festejadas na França. No entanto, somente depois que ela recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2022, é que seus livros começaram a ter traduções no Brasil. O observador mais atento descobriu seu nome quando deu com o filme homônimo que a realizadora francesa Audrey Diwan extraiu da novela de Erneaux. O acontecimento, de 2000, filmado em 2021. Aquilo que geralmente se espera, que uma arte de massa como o cinema possa produzir leitores para um livro, não ocorreu por aqui. Talvez porque a diretora não fosse um nome conhecido e o elenco não contasse com grandes nomes comerciais (mesmo Sandrine Bonnaire não chega a ter o estofo das estrelas francesas habituais). Quer dizer: o cinema não levou o público brasileiro à literatura de Erneaux. Coube ao Nobel. Prêmios, sabemos, não chancelam esteticamente uma obra; nem significam muita coisa na perenidade desta obra. Mas servem para atrair comercialmente a plateia.
Em seu texto, reproduzindo o episódio de sua gravidez e o desejo (e concretização) dum aborto aos 23 anos, a autora constrói uma autopersonagem. Sabemos que as palavras não reproduzem o real: elas o mimetizam. Quando o escritor deita a pena, ainda que pretenda falar de si mesmo e de sua vida, está criando: a intermediação entre a palavra e a realidade de fora da página é a própria invenção, uma ficção, porque aqui o narrador (criado pelo autor para se comunicar com o público) está assoberbado pela memória de seu criador, o autor. O acontecimento, o pequeno livro de Annie Erneaux, obedece a uma objetividade extrema, semidocumental para o padrão da literatura, mas ainda está longe de reproduzir os tons descarnados das imagens trazidas pelo filme. Tanto o livro quanto o filme são secos e diretos; mas se materializam diante de conceitos bastante diversos quando pomos lado a lado visão do filme (cru e ácido muitas vezes) e a leitura do livro (com meditações próximas duma abstração que o cinema objetivo parece ter dificuldade de atingir).
É bem provável que o nervo filosófico, ou existencial, do livro de Erneaux esteja em algumas ideias mais complexas, mais que a aparência de sua história. “Sei hoje que eu precisava dessa provação e desse sacrifício para desejar ter filhos. Para aceitar essa violência da reprodução no meu corpo e me tornar, por minha vez, lugar de passagem das gerações.” A escritora, ou a personagem que se espelha nela, pertence àquela categoria de espíritos esquisitos que recebem com estranheza este dado da existência: ter filhos. O aborto, antes de ser físico, já nasceu na mente.
E Annie Erneaux se põe mesmo como a essência: o que fez em seu texto é linguagem, o real lá atrás é pretexto. “E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br