No começo, uma menina pula corda e conta até cem para designar as estrelas no céu, diante duma casa que parece a figura estática de um quadro; a cena tem aspectos do figurativo pictórico. Esta imagem inicial de Afogando em números (Drowning by numbers; 1988), um dos mais enigmáticos filmes do inglês Peter Greenaway e exibido primeira vez no Brasil no FESTRIO em novembro de 1988 (eu estava lá e vi o filme numa de suas sessões), vai aparecer intersticialmente na narrativa, como um estribilho feito um dos muitos emblemas visuais estranhos desta realização; a menina não voltará a contar até cem nas suas imagens repetidas ao longo do filme, mas segue pulando cordas e aludindo a coisas que parecem extraídas dum perverso conto de fadas saxão.

Como sabem os que veem seus filmes, brilhantes e elaborados, Greenaway põe em cena seu desenho barroco da imagem cinematográfica (valendo-se outra vez das tensões fotográficas do francês Sacha Vierny) mas o faz com a capacidade do controle cerebral de um britânico. Na história cujos excertos saltitam maliciosamente diante do espectador, três mulheres chamadas Cissie: uma idosa, uma madura e outra jovem. Elas detestam seus maridos: os hábitos deles. O desejo de matá-los é subvencionado por um médico legista que delas se aproxima lubricamente. Na primeira morte, o marido da Cissie mais velha se diverte, bêbado, com uma jovem em duas banheiras, Greenaway filma com avidez a nudez de suas personagens; a cena fecha-se com o ato fatal de Cissie, ela mergulha a cabeça do homem na água da banheira, afogando-o. O cineasta constrói seu neopolicial, barroco e altissonante, de uma maneira excitantemente experimental. Em muitos momentos a movimentação cênica exacerba na construção artificiosa, parecendo quase um quadro. Greenaway se põe entre o matemático e o pintor: artificializa o que dá a beleza de seu cinema.

Afogando em  números volta aos ataques habituais de Greenaway: o sexo e a gastronomia. E as encenações exuberam nestes aspectos estomacais ligados às farturas da mesa gastronômica, que centralizaram uma perspectiva de seu filme anterior, A barriga do arquiteto (1987), estão ali de novo: uma personagem de homem, comilão e barrigudo, reclama de suas dores, mas só para de comer quando dorme, segundo sua mulher, uma das Cissies. Mas em Afogando em números estas referências intestinais-gastronômicas são mais rarefeitas. O que interessa mais a Greenaway é navegar numa parábola meio secreta, formal e tematicamente tendendo para o obscuro. A sequência final, com  o médico legista, despido, num barco em alto mar, à mercê das mulheres Cissie que ali o abandonam para morrer, é um momento cinematográfico de rara sublimidade. O cabo de guerra entre o macho e as fêmeas é filmado com crueza e beleza por Greenaway. Elas não somente pulam corda.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvamagazine.com.br)