Na dedicatória final, lemos: “dedicado aos pais que sobreviveram à morte de um filho”. A metade de nós (2024) mostra como um casal de idosos, Francisca e Carlos, lidam com o suicídio de seu único filho. Na primeira cena, eles estão no consultório do psiquiatra que tratou do filho nos últimos tempos; o tom de voz da mãe para o médico é ameaçador, de acusação. A cena do psiquiatra volta no fim, em outros relevos, mas sem perder a característica acusatória e neurótica quase inevitável para quem passou por uma tragédia desse tamanho. Ao longo do filme, o diretor, Flávio Botelho, acompanha as reações de convivência do casal em luto, a separação deles, a maneira como Francisca persegue pelas ruas o psiquiatra do filho, a obsessão de Carlos por descobrir quem foi de fato seu filho, chegando o velho Carlos a envolver-se carnalmente com um jovem que conhecera seu filho (este jovem: amigo ou amante do filho de Carlos?); Carlos se aprofunda no desejo homossexual, lidando com Eros, medo, escuridão, culpa, confusão de identidade; as cenas de Carlos com o jovem, transando, surpreendem e instabilizam o observador.

Ainda que no fim aponte para uma conciliação do casal com seu luto, em momento algum A metade de nós deixa de ser angustiante, claustrofóbico mesmo. Intimamente devastador, A metade de nós tem origem num drama familiar do diretor: ele perdeu sua irmã, que se suicidou numa fase de depressão pós-parto; em seu filme, exorcizando seus fantasmas, desloca as observações para o comportamento dos pais diante do suicídio do filho.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)