Quem É Mouchette?
Nova história de Mouchette, de Georges Bernanos, é uma novela, quase um conto
Georges Bernanos, um pouco à maneira do brasileiro Machado de Assis, traz, antes de começar o relato de Nova história de Mouchette (Nouvelle histoire de Mouchette; 1937), uma enviesada apresentação de três parágrafos. Fala exclusivamente do nome Mouchette, como se fosse ele, o nome, quem determinasse toda a atmosfera narrativa. “Dès les premières pages de ce récit le nom familier de Mouchette s’est imposé à moi si naturellement qu’il m’a été dès lors impossible de le changer.” Bernanos não teve como mudar o nome de sua heroína. O nome é o mesmo da figura feminina de Sob o sol de Satã (1926). Mas na mesma apresentação inicial Bernanos adverte: “La Mouchette de la Nouvelle Histoire n’a de commun avec celle du Soleil de Satan que la même tragique solitude où je les ai vues toutes deux vivre et mourir.” Bernanos, um herdeiro do realismo de Honoré de Balzac que se transforma ao alvorecer do século XX, fala de suas Mouchettes como se, para além de sua pena, as tivesse visto (“je les ai vues toutes deux”) nos cenários concretos de sua imaginação. E de fato: a Mouchette do Satã difere muito desta da Nova história; naquela, Mouchette era codinome, seu primeiro nome era Germaine, e apresentava uma certa devassidão; esta foi uma donzela deflorada por um homem bêbado, só a conhecemos por Mouchette, “dès les premières pages”.
Nova história de Mouchette é uma novela, quase um conto, e se vale muitas vezes duma linguagem com menos adereços metafóricos que os habituais em Bernanos, daí sua estreiteza de espaço. Mas o romancista nunca abdica de sua solenidade narrativa quase oratória, à Jacques Bénigne Bossuet, um religioso do século XVII que bem poderia ser uma personagem de Bernanos. Ele começa Nova história de Mouchette com o mesmo tom de narrativa descortinante de Sob o sol de Satã: “Mais déjà le grand vent noir qui vient de l’ouest —le vent des mers, comme dit Antoine— éparpille les voix dans la nuit.” O grande vento negro que vem do oeste é um sopro dentro das vozes noturnas que se espalham pelas páginas de Bernanos.
No entanto, o ponto máximo da criação literária em Nova história de Mouchette, aquilo que catapulta a novela para um dos cumes da literatura do século XX (a despeito de sua brevidade) são as páginas em que o senhor Arsène e a pequena Mouchette (“ma belle” ou “petite” murmura seguidamente Bernanos pela boca safada de Arsène) se enfrentam em seus papéis, sedutor e seduzida, agressor e agredida, macho e fêmea. As longas idas e vindas, em gestos e diálogos, da aproximação fatal entre o madurão embriagado Arsène e a virgem ingenuamente oferecida, indo ter na cena final em que a experiência do homem possui (toma posse sexualmente) os princípios da mulher, está entre as coisas mais notáveis da literatura voltadas para a aproximação carnal entre um homem e uma mulher. Primeiro movimento: “Cette fois Mouchette ne s’y trompe pas. Elle a reconnu l’accent de cette bouche invisible, la voix comme suspendue dans la nuit, et si terriblement proche.” A fêmea não se engana: reconheceu os indícios do macho próximo. Segundo movimento do concerto erótico: “Il jette sur elle, au hasard, ses mains violentes auxquelles le paroxysme du désir prête une force effrayante, une diabolique sûreté.” O homem se arremessa ao acaso sobre a fêmea, com mãos violentas e o paroxismo do desejo. O estupro está feito. É, perdoem os moralistas, perdoe o catolicismo de Bernanos, um dos mais belos estupros da história literária.
(Email: eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br