O Rigor Que No Se Quebra

Mouchette, de Robert Bresson, tem uma secura potente em todas as suas linhas.

14/07/2014 12:53 Por Eron Fagundes
O Rigor Que N達o Se Quebra

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É o rigor cinematográfico que permite ao francês Robert Bresson aprofundar-se na alma das pessoas como talvez poucos cineastas. Contados nos dedos: o sueco Ingmar Bergman, o italiano Michelangelo Antonioni, o espanhol Carlos Saura, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer. O rigor buscado por Bresson, pode-se dizer sem temores, é único: ele tira a carne do celuloide para expor seu esqueleto, mas nada do odor de tumba de que fala um texto de um dos escritores favoritos do diretor, o romancista francês Georges Bernanos; o esqueleto fílmico exibido em Bresson tem uma luz densa que une o espírito à plasticidade.

Mouchette (Mouchette; 1967) tem uma secura potente em todas as suas linhas. Bresson filma os passos da jovem camponesa deflorada por um homem maduro, durante uma noite que iniciara com um temporal na floresta, com as mesmas justaposições formais, exatas e maravilhosas, usadas para descrever o caminho de Joana d’Arc no julgamento de O processo de Joana d’Arc (1962) ou o périplo do burrinho Baltasar pela campanha francesa em A grande testemunha (1966). Isto é: em todos os seus filmes Bresson refaz e depura seu processo cinematográfico, sem desvios, sem as imprecisões a que o cinema convida.

Em Mouchette Bresson volta a visitar um de seus parceiros literários preferidos, o já citado Bernanos, dezessete anos depois de Diário de um padre (1950). O mote de Bresson agora é a novela Nova história de Mouchette, publicada na França em 1937. Na apresentação de sua novela Bernanos escreveu que a Mouchette de 37 praticamente nada tinha de comum com aquela de Sob o sol de Satã de 1926 senão a solidão em que viu ambas viverem e morrerem. Outro francês, Maurice Pialat, filmou a Mouchette de 1926 num filme polêmico de 1987. Se Pialat optou por uma certa tagarelice metafísica engenhosa, Bresson construiu sua Mouchette com poucas palavras, interpretações duras e um certo osso por dentro da imagem que torna seu filme dotado de uma complexidade paracinematográfica. Na verdade, ninguém alcança Bresson, nem mesmo um discípulo aplicado como Pialat.

Se as Mouchettes da literatura não são de fato as mesmas (a de 1926 chamava-se originalmente Germaine, a segunda é durante todo o texto simplesmente Mouchette, um nome que, diz o escritor, se lhe impôs desde o início que não teve como mudá-lo), as Mouchettes do cinema vão mesmo por caminhos distantes, consoante, desde o início, suas origens literárias. A textura nervosa de Sandrine Bonnaire se distancia do bloco rígido que Bresson extrai das inexperiências de Nadine Nortier, mas este bloco rígido bressoniano não é algo morto, o dito perfume de tumba, antes é algo que palpita e tem luz própria em sua estaticidade medidativa. A Mouchette de Bresson (que é a segunda Mouchette de Bernanos) não vai degolar-se (como a primeira de Bresson, filmada por Pialat); na cena final de Mouchette a personagem, para suicidar-se, despenca três vezes pelo barranco, até que na última tentativa é bem-sucedida e cai no riacho, afogando-se; Bresson filma estes gestos derradeiros com aquele rigor preciso de cruzamentos de planos que ele repetiria no suicídio que abre o longo flashback que é Uma mulher suave (1969), inspirado em Dostoievski. Sobre a felicidade desta mutação do texto literário em imagem cinematográfica na cena final, o crítico literário francês Jean-Luc Steinmetz observou que Bresson é mais convincente, quer dizer, mais bernanosiano que o próprio Bernanos, que descreve mais secamente a coisa toda (“Mouchette se deixou deslizar na costa até que sentiu ao longo de sua perna e até a cintura a doce mordida da água fria”).

Apesar das proximidades com a literatura, o cinema de Bresson não se entrega ao hedonismo da palavra, como Pialat ou Eric Rohmer. Pensemos nos ecos convidativamente literários das frases de Bernanos para pôr sua Mouchette no riacho como berço da suicida: “Mouchette se laissa glisser sur la côte jusqu’à ce qu’elle sentît le long de sa jambe et jusqu’à son flanc la douce morsure de l’eau froide”. “A doce mordida da água fria...” em Bresson é descrita como uma seca e melancólica queda n’água, depois das tentativas de ajustar-se à morte rolando pelo barranco que tanto chamaram a atenção do analista Steinmetz.

(eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publica苺es de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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