As Dores de Francisca
Francisca, de Manoel de Oliveira, é antes de tudo um dos mais sombrios filmes já feitos
Para quem se perturba com a estranheza das encenações de alguns filmes recentes do português Manoel de Oliveira, como Um filme falado (2003) e Espelho mágico (2005), dar com Francisca (1981) revela porções ainda mais assustadoras das provocações estilísticas e temáticas que o cineasta joga despudoradamente na cara do espectador. Poucas vezes o cinema abdicou com tanto rigor de seus truques e ilusões para se deter em seus próprios artifícios desnudados por inserções plásticas e literárias; os longos planos fixos, preenchidos por gestos brandos e ao mesmo tempo tensos dos intérpretes, remetem à literatura e ao teatro, uma narrativa que se caracteriza mais literariamente quando os intertítulos dão uma suma muito breve da cena que virá em densas e complexas (apesar de simples) imagens; esta caracterização do artifício de encenar é completada pela utilização de cenários elaboradamente estáticos e onde muitas vezes o fundo é um telão pintado, voltando ao velho cinematógrafo de estúdio, como faria o francês Eric Rohmer em seu recente A inglesa e o duque (2001), atualizando o processo para as conquistas digitais. Falando em Rohmer, Oliveira, especialmente aqui em Francisca, se assemelha ao diretor francês na condição de romancista cinematográfico, criando uma estrutura fílmica rigorosa para edificar personagens extremamente profundas. Não me parece por acaso que, no distante ano de 1981, esta obra-prima de Oliveira dividisse com A mulher do aviador (1981), de Rohmer, as preferências dos críticos do Cahiers du Cinéma como o melhor filme visto na França naquele ano.
Oliveira, que ainda está vivo e ultrapassou um centenário de existência, tinha mais de setenta anos quando fez Francisca, que parece um destes afrescos que nascem diretamente dos liames sentimentais do século XIX. O realizador, vamos exagerar um pouco, se põe sentado em seu cenário de época; sua frieza e seu distanciamento não são as de um homem que sobrepuja o anacronismo do que está contando (por exemplo, Francisca, ou Fanny, a heroína, morre virgem, tetricamente, após seu casamento com José Augusto, uma relação amorosa meio fúnebre), a secura e o olhar enviesadamente torpe de Oliveira são os de um observador novecentista, daí a extrema autenticidade do retrato social e moral que expõe a despeito das opções formais artificiais. Oliveira encampa a ingenuidade de suas personagens mas lança sobre este universo seu alto poder de reflexão, que, sabe-se por seus últimos filmes, está sempre na ponta dos cascos no século XXI; Francisca se vale dos meios românticos para se impor como a mais anti-romântica história de amor jamais contada pelo cinema, demonstrando quão longe estamos das papagaiadas de fácil consumo rodadas por Hollywood, como O amor não tira férias (2006), de Nancy Meyers, por mais simpáticos e formalmente bem acabados que estes clichês americanos possam afigurar-se aos olhos do público: ao interferir na marcação do olhar deste público, com suas encenações que se enovelam repetindo cenas sob ângulos diferentes ou fazendo um cavalo entrar em refinados aposentos burgueses como uma visita da casa, Oliveira decreta conscientemente sua ruína de platéia.
Francisca é antes de tudo um dos mais sombrios filmes já feitos; rodado quase todo em trevas, é escuríssimo, fechadíssimo, mas seu sombrio não é o sombrio pesado do expressionismo germânico, trata-se sim dum sombrio melancólico lusitano. São poucas as vezes em que a câmara de Oliveira se abre para a claridade dos exteriores de Santa Cruz do Douro, onde tudo foi rodado: quando uma embarcação singra o mar, depois uma outra cena de ondas de mar antes de a câmara fixar um telão que simula o mar diante duma janela enquanto no interior personagens conversam, talvez uma outra cena numa escadaria na rua, que mais? O resto é sombras. Sombras que Oliveira povoa com sua genialidade.
Francisca foi o primeiro filme produzido pelo português Paulo Branco, nome que depois estaria sempre associado a obras consideradas de difícil comercialização; além de filmes de Oliveira, lembro trabalhos do chileno Raoul Ruiz e do norte-americano David Lynch que tiveram a marca de Branco nos créditos. Francisca teve seu roteiro extraído do romance Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, nome que esteve seguidamente ligado às dialogações nos filmes de Oliveira e onde Oliveira foi buscar um novo porto ao filmar outro romance dela, Vale Abraão, em 1993. Uma das curiosidades de Francisca é a presença forte como personagem do escritor português Camilo Castelo Branco, um êmulo de Alexandre Herculano no meio literário luso de então, como deixa claro uma das alusões dos diálogos da realização; Oliveira carrega nas tintas ao expor a vigarice sentimental do grande ficcionista, e à figura de Camilo o cineasta tornaria em O dia do desespero (1992) ao filmar a personagem às voltas com sua cegueira e prestes a cometer seu suicídio. O elenco é ajustado: Tereza Menezes está fascinante como Francisca, assim como Mário Barroso humaniza agudamente uma figura que facilmente poderia ser mitificada por um português culto como Oliveira.
No frigir de todos os ovos cinematográficos, Francisca talvez seja o ponto mais deslumbrante do cinema de Oliveira, o que é sempre um excesso quando sabemos que ele só tem rodado obras-primas. Aborrecidas para a maioria do público, incluindo-se entre este público indivíduos de indiscutível saber cinematográfico, mas um deleite para quem captar suas atmosferas peculiares.
(Email:eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br