O Rigor Que Se Deixa Ir
Coisas Secretas é o filme que marcou a filmografia e a vida de Jean-Claude Brisseau
Num momento dos encontros iniciais da garçonete Sandrine com a stripper Nathalie, esta, visando a soltar as amarras corporais de sua companheira para um melhor reduto das sensações, assopra à outra: “Lasse-toi aller!” O que se vê depois, ao longo das quase duas horas de narrativa de Coisas secretas (Choses secrètes; 2002), são duas personagens femininas que se deixam ir na correnteza de si mesmas: isto é, de seus próprios corpos. “Lasser” é o verbo francês para nosso “deixar”; a origem latina de “lasser” é a mesma de nossos “lassar, lasso, lassidão”, o vocábulo latino “lassare” é que gerou o “lasser” francês e o “lasso” português e significa “afrouxar”. Nosso “deixar” (que é o que traduz o “lasser” dos franceses) era em português arcaico “leixar” e tinha uma fonte latina próxima daquela do “lasser”, “laxare”. Afrouxar a rédea moral, eis o que propõe o realizador francês Jean-Claude Brisseau (que mais recentemente fez outra provocação extraordinária, A garota de lugar nenhum, 2012); no entanto, ao mesmo tempo em que atenua os freios sexuais da moralidade de sempre, aponta para um rigor cinematográfico que se deixa ir para uma radicalização de filmar que torna seu filme, mesmo tratando de espaços físicos tão bem conhecidos como são os do sexo hoje em dia, cheio destas coisas secretas que impedem as facilidades a que o grande público está acostumado. De uma maneira diferente, porém com o mesmo senso revolucionário, outro francês, Alain Guiraudie fez algo assemelhado em Um estranho no lago (2012): o sexo que se deixa correr.
Coisas secretas é o filme que marcou a filmografia e a vida de Brisseau, entre outras coisas, porque lhe gerou um processo judicial e o levou à prisão. As atrizes centrais foram à Justiça Francesa alegando que no set de filmagem o diretor as induzira a fazer coisas que na verdade não queriam fazer. Isto faz pensar imediatamente no que ocorreu com outra produção francesa, Azul é a cor mais quente (2012), em que Abdelatif Kechiche foi acusado em público por suas intérpretes de as ter empurrado sorrateiramente para coisas indevidas; consciente de sua antecipação no mundo do cinema, Brisseau falou sobre o caso do filme de Kechiche, que, todavia, não chegou a ter suas versões tribunalescas. Na verdade, a obra de Brisseau abdica da intensidade emocional e visual edificada por Kechiche em seu filme, preferindo mais uma elaboração intelectual das relações sexuais pela compactação de cenários, despojamento de cores, movimentos precisos de câmara ou uma manipulação à distância, ou distanciada, das imagens dos corpos das duas mulheres.
Que acontece? Sandrine perde sua ingenuidade quando topa com as travessuras físicas da stripper Nathalie. Nathalie lhe dá aquele comando que referi na introdução deste texto: “Deixa-te ir!” Naquele “lasser” da língua original há um esquecimento da consciência para que o movimento de “ir” (aller) possa ser de fato livre. E Brisseau não deixa suas personagens irem sozinhas: espia-as como um demiurgo, muito mais do que como um “voyeur”, quer dizer, seu olhar de cineasta é um olhar de meditação. Assim, chegamos ao poeta (francês, como os demais artistas citados neste comentário) Arthur Rimbaud, que em seu breve poema “Sensação” anotou: “hereux comme avec une femme!” Brisseau, em seu cinema, se põe assim: feliz; como se estivesse com uma mulher. A câmara de Brisseau que devora as atrizes é também devorada por elas. Se Brisseau, e seu cinema, tem algum representante diegético no filme, este é Christophe, o madurão que é herdeiro dum império econômico e que usa as duas garotas ao mesmo tempo em que elas o usam. Ao deixar-se ir no rigor carnal do cinema, Sandrine, Nathalie, Christophe e a própria narrativa de Brisseau autodevoram-se. A imagem construída por Brisseau parece tocar sempre o corpo humano, quase como alguns versos de Rimbaud o fazem. “Ta poitrine sur ma poitrine,/ Hein? Nous irions,/ Ayant de l’air plein la narine,/ Aux frais rayons.” (“Teu peito sobre meu peito,/ Hein? Nós iríamos,/ tendo a narina ar pleno,/ Aos raios frescos”). É bom ver os filmes de Brisseau assim, lado a lado com aquilo que nos provocam as frases de Rimbaud, pois isto tudo obedece a uma autodefinição do cineasta, que se dizia “le fils d’une femme de ménage qui a vécu dans un rêve de cinema” (filho duma faxineira que viveu num sonho de cinema). É bem assim: Rimbaud chafurdou nas tensões populares para extrair seus refinamentos que ainda hoje espantam. É o que faz Brisseau na linguagem cinematográfica.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br