A Palvra Incendiada; A Imagem, Ascética
Palavra e Utopia (2000) é um dos principais filmes da primeira década do século atual
Antônio Vieira, português de nascimento, mas figura central dos anos de formação da literatura brasileira, tinha incêndios na palavra. Seu verbo era altissonante, mas nunca vazio; suas formas barrocas tinham profundidade. O verbo muito particular de Vieira foi caracterizado por Machado de Assis, pela boca de Brás Cubas, como solene; Machado, transfigurado em sua personagem Cubas, lamentava (ironicamente? sinceramente?) não ter o verbo solene de Vieira (e também o de seu aparentado francês Bossuet?) para descrever minuciosamente a desolação de um ser de seu romance.
Vieira é, pois, um assunto à altura do grande cineasta português Manoel de Oliveira. Palavra e utopia (2000), um dos principais filmes da primeira década do século atual, é um diálogo dialético precioso do cinema de Oliveira com a literatura de Vieira; vemos e sentimos a palavra incendiada de Vieira (com seus paralelismos sintáticos e semânticos cheios de vibrações inesperadas) dentro da imagem ascética e esteticamente pudica de Oliveira —o cinema de Oliveira é de raiz à Robert Bresson (cineasta francês do espírito), mas parte por outros caminhos, ligando-se diferentemente às origens literárias, de pura aventura do cérebro. Palavra e utopia parte da figura de Vieira (as pesquisas históricas se juntam com o gosto de Oliveira pelo texto de Vieira), mas não é uma cinebiografia, nem muito menos um semidocumentário histórico; embora se percebam as tendências documentais do diretor luso, Oliveira estrutura seu Vieira dentro dum arcabouço ficcional, é uma ficção de ideias, Vieira é somente um dos tantos pretextos para que Oliveira exercite sua notável autoria cinematográfica. Palavra e utopia é na verdade, entre muitas coisas, uma reflexão sobre a palavra e seus dilemas: utopias.
Com mestria de intenções, Oliveira se vale de três atores para compor sua imagem cinematográfica de Vieira. Ricardo Trepa, neto de Oliveira, vive um jovem Vieira. Luís Miguel Cintra, habitual persona dos filmes de Oliveira, é o Vieira maduro e combativo. O brasileiro Lima Duarte, com seu inconstante sotaque luso-brasileiro, põe na tela a velhice “achacada” de Vieira e representa com singeleza seu último suspiro no leito em que recebeu a informação do Vaticano de que o liberaram da punição de cortar sua voz ativa e passiva. Apesar do colorido desajustado destas interpretações, Oliveira confere um rigor estético e ético a Palavra e utopia.
Talvez o centro discursivo da narrativa de Oliveira seja aquele episódio em que Vieira encena seu As lágrimas de Heráclito, em 1674, diante da Academia Real de Roma, como respostas às assertivas do padre italiano Girolamo Cattaneo em O riso de Demócrito, na mesma ocasião. Os dois textos foram publicados no original italiano e em tradução portuguesa pela editora 34, em 2001. Na dialética lágrima-riso Oliveira quiçá busque em Vieira um pouco das essências cinematográficas, algo que o cineasta norte-americano Woody Allen também colocou num de seus filmes.
Como contraponto fílmico, cabe lembrar que o realizador brasileiro Júlio Bressane já pintou seu Vieira em Sermões, a história de Antônio Vieira (1989). Longe do ascetismo europeu de Oliveira, Bressane se entrega a um arabesco cubista terceiromundista. Os sermões de Vieira que Bressane espalha por seu trabalho são outros que não aqueles do filme de Oliveira. Mas surge também o Vieira defensor dos judeus e sua problemática relação com o poder. O Oliveira abelhudo surge numa referência de diálogo de Bressane: metendo-se em todos os assuntos, Vieira é visto desconfiadamente pelos dirigentes temporais e eclesiásticos. Othon Bastos, ator-símbolo do cinema brasileiro erigido por Glauber Rocha e Leon Hirszmann, é um Vieira de cabo a rabo, embora uma criança viva num plano um Vieira estúpido, antes da iluminação. Bressane associa seu Vieira ao Kane do cineasta norte-americano Orson Welles (há um plano em que a boca de Othon murmura “Antônio Vieira” como Welles no leito de morte de sua personagem dizendo “Rosebud”; um enigma Vieira?) e à Joana d’Arc do diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer, especialmente pelos sofrimentos com as incompreensões da Inquisição.
São obras cinematográficas distintas —Palavra e utopia e Sermões, a história de Antônio Vieira—, mas cabe dizer que o filme de Oliveira vai mais longe em sua busca de transformar a ideia Vieira numa ficção. O cantor brasileiro Caetano Veloso canta e depois discursa no filme de Bressane. Há um sermão de Vieira utilizado no filme de Bressane em que o grande orador sacro diz que no Novo Mundo são as ideias que pregam o pregador. Em Palavra e utopia, à maneira europeia, o pregador prega suas ideias ao mesmo tempo em que é pregado por estas ideias. Não é por nada que, depois das mortes do italiano Michelangelo Antonioni e do sueco Ingmar Bergman, muita gente tem o veteraníssimo cineasta português como o maior dos homens de cinema em atividade no mundo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br