O Cinema Transformado em Palavras
Os dois maiores cérebros cinematográficos gaúchos foram críticos de cinema e não cineastas
Os dois maiores cérebros cinematográficos gaúchos foram críticos de cinema e não cineastas; há mais de dez anos saiu na coleção “Escritos de cinema”, editada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, uma coletânea dos textos de um deles ao longo das décadas, ao mesmo tempo em que o outro lançava por uma editora local um breve ensaio sobre as imagens em movimento observadas em filmes. Na verdade, são os únicos autênticos críticos de cinema do Rio Grande do Sul. Fala-se aqui de Tuio Becker, falecido há alguns anos depois de mofar por um tempo numa clínica em que o penduravam do mal de Alzheimer, e Luiz Carlos Merten, que hoje vive e escreve em São Paulo. A organização da publicação de Tuio se deveu a Marcus Mello, empenhado ativista de cinema da cidade, e cobre um período que vai de 1961 (Tuio era adolescente quando, ainda em Santa cruz do Sul, de onde era natural, começou a publicar sobre cinema em jornal) a 2001 (o mais recente escrito trata de De olhos bem fechados, o derradeiro filme de Stanley Kubrick), ano da aposentadoria do jornalista; o resultado é o livro Sublime obsessão (2003), onde o leitor pode deslumbrar-se com a engenhosidade da visão cinematográfica de Tuio, sua rara memória para as coisas do cinema, seu raciocínio percuciente, a emoção em palavras em que ele joga com a emoção que o filme analisado lhe proporcionou. Igualmente sagaz é Luiz Carlos Merten em Cinema; entre a realidade e o artifício (2003); Merten foi roubado do convívio gaúcho pelos paulistas faz mais de vinte anos e a publicação de seus velhos textos põe à disposição do leitor que ama cinema uma mente apaixonada, sempre; ora didático, ora agudamente analítico (conforme o filme? conforme o humor do analista?), Merten apresenta uma generosidade crítica a toda a prova.
Pode-se dizer que Tuio Becker é um dos poucos analistas de filmes que logra passar ao leitor a emoção que o filme desencadeou nele. É um processo complexo esta linha que vai do filme à emoção do comentarista à mente-coração do leitor que muitas vezes também antes se emocionou (ou não) com o mesmo filme. Lendo Tuio, vemos transformar-se, com mestria, o cinema visto em palavras, que de tanta essência cinematográfica parece estarmos diante de pedaços de celuloide e não de elementos verbais. Cuido que só a alemã Lotte H. Eisner chegava a esse prodígio. Sublime obsessão é uma bela introdução àqueles que não conhecem o pensamento cinematográfico de Tuio. Mas é bom dizer: os textos de Tuio escritos ao longo de quarenta anos de um exercício crítico inigualável por aqui dariam matéria para mais dois ou três volumes tão extensos e tão densos quanto Sublime obsessão.
A frase de Tuio tem a beleza e a clareza de um pensamento cinematográfico que se descortina diante do leitor com significados inesperados, achados de observação. “Num plano bem próximo, o Super 8 226, que realizei há alguns anos, evocava a destruição de uma casa e mostrava uma mulher que morava naquela casa e que já morrera. Em movimento, ao vivo e a cores, o cinema tem esse lado sutilmente malvado de criar uma ilusão de realidade. Objetos e pessoas parecem vivos. O cinema simula a vida. Mostrando locais que não mais existem, pessoas que já desapareceram, ele provoca uma sensação de realidade. Mas como se trata de uma abstração (a imagem não pode ser tocada, como deseja a mulher vendo seu marido morto, no início de Starman, o homem das estrelas) a simulação do real deflagrada pelo filme transforma, no caso dos títulos citados, algo irreal num componente real: a dor.” Observe-se que o curta-metragem 226, dirigido por Tuio, é um dos mais belos feitos no Rio Grande do Sul e permite esta divagação entre a realidade e a irrealidade (até mesmo por sua forma narrativa) que está na essência das preocupações críticas do jornalista-cineasta em muitos de seus textos. Bem observa Luiz Carlos Merten no prefácio de Sublime obsessão: Tuio foi o único jornalista cinematográfico que chegou a dirigir filmes. Relendo o texto de Tuio acima copiado, as referências ao desespero entre o real e o irreal no cinema, é algo tão poderoso quanto o desespero do narrador do romance argentino A invenção de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, onde no último parágrafo o protagonista faz um pedido alarmante para unir sua imagem-real à imagem-imagem de sua amada: “Ao homem que, com base neste informe, invente uma máquina capaz de reunir as presenças desagregadas, farei uma súplica. Procure a Faustine e a mim, faça-me entrar no céu da consciência de Faustine. Seria um ato piedoso.” Pensando no que disse Merten da busca de Tuio pela prática do cinema, não se pode deixar de ver nisto (sair do jornal para o set de filmagem, ainda que do jornal nunca saíra) o mesmo tipo de desespero: juntar as presenças desagregadas, o cinema transformado somente em palavras e o cinema mesmo onde até a palavra é imagem. Talvez Tuio estivesse demandando este ato piedoso de seus leitores futuros.
Ao longo da coletânea, acompanhamos às vezes estupefatos, sempre atentos a lucidez de Tuio ao penetrar nos meandros dos filmes cerebrais de Andrei Tarkovsky e Krysztof Kieslowski e a extremada preciosidade das ideias que emanam do debruçar-se sobre a realização nipônica A volúpia da vingança, de Eizo Sugawa. “A elegância dos planos da narrativa de Sugawa baseia-se numa inteligente exploração do cenário e do roteiro.” Evoco que Tuio sempre foi um exegeta radical e inconformista; não me lembro de outro crítico por aqui que defendesse sem pudor obras tão revolucionárias em seus conceitos de cinema quanto Fata Morgana (1969) e Coração de cristal (1976), ambas de Werner Herzog, ou O poder dos sentimentos (1983), de Alexander Kluge. E defendia estas excentricidades não com argumentos e linguagem amorfos, mas com uma visão apaixonada e profunda, cheia de uma desenvolta vitalidade. Era Tuio num tempo em que a cinefilia permitia estas ousadias provocativas.
Tuio sempre foi uma cabeça de cinema muito à frente de seu tempo e do provinciano meio em que sua inteligência se manifestava. Ao analisar Amarcord (1973), de Federico Fellini, num texto publicado em maio de 1975, ele assim se expressa nas frases finais: “Mais um ponto positivo na carreira de Fellini, seu último filme abre com o pé direito a programação do Cinema 1, que promete para este ano de várias obras importantes, até então inéditas no Brasil. E fica aqui uma sugestão aos distribuidores: a apresentação de Os palhaços, do mestre Fellini.” Os palhaços só foi lançado na cidade vinte e sete anos depois, no fim de 2002: o que dá a medida dos anos-luz que separam o estágio avançado da mente de Tuio dos demais “seres cinematográficos” que vagam por aqui.
Uma das curiosidades descobertas pelo organizador de Sublime obsessão é a existência de um Tuio Becker contista. São poucos os textos de contos incluídos no volume: todos escritos na curva dos trinta anos do escritor, mas revelam elegância verbal e acuidade de movimentação ficcional que Tuio poderia ter desenvolvido se insistisse mais nos anos seguintes. Como Paulo Emilio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet, Tuio teve lá sua literatura à margem do cinema, embora um dos contos enverede por uma temática que propõe visões de filmes. Mas, examinando certas crônicas-críticas de Tuio, estas adotam a pose de um conto, com um jeito narrativo que escapa ao jornalismo informativo e vai para os braços duma ficção documental: é o caso de “A passagem da estrela incógnita”, em que, com habilidade, Tuio liga a passagem de Dominique Sanda por Santa Cruz do Sul ao momento em que, numa de suas andanças por Madri, nosso autor deu, sem o saber (embora desconfiando), com a atriz Sylvia kristel no auge do estrelato da intérprete de Emmanuelle.
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No apêndice final de Sublime obsessão há uma entrevista que Tuio Becker deu, em 1988, à revista Alto Falante, de Santa Cruz do Sul; perguntado sobre a existência duma crítica de cinema em Porto Alegre, Tuio foi corretamente duro e chamou de comentários o que se fazia na cidade, afirmando que o melhor texto de cinema por aqui era, disparado, o de Luiz Carlos Merten. Seria, não fosse a existência dum Tuio Becker. É o que está bem revelado em Cinema; entre a realidade e o artifício, o novo apanhado histórico-contemporâneo a que Merten se abalança oito anos depois de Cinema, um zapping de Lumière a Tarantino (1995).
Novamente passa pelo crivo de um exegeta do cinema este aspecto duplo dos filmes de buscar emoções reais por meios notoriamente artificiais. Se Tuio falava da irrealidade das formas capaz de produzir uma dor muito real em certos espectadores ou personagens, Merten fala de algo parecido quando reflexiona sobre Moulin Rouge: “Bahz Luhrmann também celebra o artifício em Moulin Rouge, mas ao tentar lembrar-se do filme você reterá muito possivelmente as lágrimas de Ewan McGregor ou as da sublime Nicole Kidman, quando ela, como Satine, sabe que tem de mentir para salvar o amado. São lágrimas sinceras.” À transcendência totalizante da crítica de Tuio, Merten substitui uma tentativa (realista? especulativa? científica?) de expor as mutações da máquina giratória que é a tecnologia cinematográfica.
Merten passa por Eisenstein e Orson Welles, aduz que devamos esquecer Tarantino e Greenaway e desvenda o futuro do cinema assistindo a Ten, o mais recente filme do iraniano Abbas Kiarostami, sem deixar de olhar para O senhor dos anéis, as duas torres ou para Moulin Rouge. Um olhar eclético, certamente. Merten fia-se que ninguém mais duvida que o cinema seja uma arte; e cita Robert Bresson, Yasujiro Ozu, Abbas Kiarostami, Krysztof Kieslowski, para assacar contra os céticos. Vê na extraordinária cena do banho de Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, o embrião tecnicista de diretores como Steven Spielberg, Brian de Palma, George Lucas. Uma miscelânea barroca notável, sim, mas capaz de iluminar e ajudar nossa visão dos filmes. Ao contrário do que fazia em seu livro anterior, publicado oito anos antes, Merten já não se preocupa com definir se o cinema é uma arte, se ele às vezes é uma arte, às vezes um entretenimento passageiro; ele é uma arte por Bresson e Kiarostami. “Essa é uma via e talvez seja até a mais nobre, mas não é a única.” Merten não chega a dizer-nos se O senhor dos anéis é uma obra de arte, mas defende que o futuro do cinema passa pela invenção digital (que seria uma reinvenção do cinema). No entanto, esta interminável discussão sobre a essência artística do cinema não é a inquietação de Merten em Cinema; entre a realidade e o artifício: ele está mais preocupado em focar a realidade cinematográfica que nasce das formas irreais de encenação.
Esta irrealidade vai estar presente na utilização da câmara digital (que prescindiria do autor) pelo mais realista e humanista dos cineastas contemporâneos, o iraniano Abbas Kiarostami. Merten mostra que, quando um homem como Kiarostami (que sempre se opôs ao vazio da forma), entra numa experimentação estética tão radical quanto a de Ten, todas as portas estão abertas para o futuro do cinema.
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Cinema vertido em palavras. A sublimidade do verbo-imagem em Tuio Becker. O cinema do consolo e da mutabilidade em Luiz Carlos Merten. Quando as palavras dos críticos se calam, vamos ao cinema conferi-las. Quando as luzes do filme se apagam, deitamos os olhos nas palavras dos críticos para desfrutar de novo e sob uma nova forma do filme. Ver o filme em imagens, rever o filme em palavras, vê-lo em palavras, revê-lo em imagens. Para quem gosta de cinema e para quem ama textos de cinema, é para estes que cérebros privilegiados como os de Tuio e Merten escrevem.
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Segue um necrológio escrito em 2008, nos dias seguintes ao falecimento de Tuio Becker. Uma re-homenagem sempre adequada quando se fala de livros de cinema no Rio Grande do Sul.
ELE JÁ TINHA MORRIDO ANTES
(UMA ORAÇÃO FÚNEBRE)
Dizer que o jornalista e crítico de cinema Tuio Becker morreu na noite de dois de maio de 2008 é desconhecer quem foi esta figura extraordinária da cultura gaúcha. Tuio foi acima de tudo um cérebro de cinema. Ele começou a morrer em 2001 quando o mal de Alzheimer começou a destruir seu cérebro. Em que momento se deu a morte total deste cérebro eu não sei. Mas já há alguns anos ele estava internado numa clínica de Porto Alegre e, segundo Wanderley Ponzi, seu companheiro de quatro décadas, não estávamos mais nem perto do Tuio Becker que seus amigos conhecemos. Imagino que Tuio fosse um corpo sem cérebro nos anos recentes: o corpo sem alma a que se referia o padre Antônio Vieira numa frase que já se perde nos desvãos de minha memória. Como minha amiga (e de Tuio) Anna Hauser, também fui terrivelmente covarde e não me animei a ir à clínica ver o que sobrara daquele indivíduo que, desde o início dos anos 80, me assombrava não somente com seus textos de jornais mas ainda com sua capacidade de, em conversações pessoais, descrever seqüências básicas do cinema que ele vira vinte anos antes. Foi a mais aguda e completa memória fílmica com que topei nestes pagos. Certa vez meu amigo Décio Freitas, historiador já falecido, me questionara sobre algo do cinema que eu desconhecia e lhe indiquei o Tuio; depois Décio me falou de seu assombro com a quantidade de detalhes despejada por Tuio ali, na hora, chegando a aduzir que Tuio deveria estar consultando arquivos de computador; não era, Tuio não pertencia à era do Google, os arquivos que ele consultava estavam em sua própria prodigiosa memória. Há um texto dele, chamado “Casanova de Fellini: amante, mágico e repórter”, publicado em 1979, que é o que de melhor se escreveu sobre cinema por aqui. Quem eventualmente passa os olhos sobre o que escrevo, vai notar que minha maneira de analisar filmes é herdeira de Tuio; confesso-o sem pudores.
Entre as ironias da vida (a vida dele e a minha), Tuio (ou o corpo que atendia antes pelo seu espírito) morreu no dia em que eu estava viajando a Caxias do Sul para visitar uma tia muito doente; só soube de seu passamento ao retornar e espiar jornais atrasados. Curiosamente, Tuio foi cremado em Caxias do Sul, no final da tarde de sexta-feira; naquele fim de tarde violentamente chuvoso em Caxias, eu andava entre o acompanhamento a minha tia no Hospital Medianeira e o trânsito pela condução de parentes de cá para lá, dirigindo carro quase sem visibilidade; Tuio, meu Deus do céu!, estava sendo cremado por ali perto. Ao evocar isto, eu na chuva impiedosa dirigindo, o corpo do Tuio transformado em farelos num cenário próximo do meu, percorre-me um calafrio.
Até qualquer dia, amigo Tuio.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br