O Pensamento Original de Maffesoli
O pensador francês Michel Maffesoli construiu sua obra em torno do prazer de viver e do prazer de estar com o outro
O pensador francês Michel Maffesoli construiu sua obra (que inclui livros, conferências, aulas e provavelmente chega até sua própria vida) em torno do prazer de viver e do prazer de estar com o outro; seu clássico conceito de tribalismo engloba estes dois prazeres, e traz à luz o arcaico do homem (a tribo, o selvagem) no pós-moderno (o tribalismo, as junções fragmentadas de hoje). Homo eroticus; comunhões emocionais (Homo eroticus; des communions émotionelles; 2014), editado entre nós pela Florense, com tradução de Abner Chiquieri, é um ponto alto de seu pensamento; tem a inteireza e a força duma dissertação tão precisa quanto impulsiva sobre as incursões da sensibilidade nas aventuras da razão de hoje, estas esboçadas por alguém que pensa como Maffesoli e que nunca se esquece de viver: estamos diante daquilo que nosso autor chama “razão sensível”.
Um intelectual cujo para-intelectualismo incomoda os mais rançosos, Maffesoli começa não poupando sequer a instituição em que trabalha, a Sorbonne, famosa universidade parisiense. Professor de filosofia ali, o pensador-vital sabe do que fala. Citando Kierkegaard, Maffesoli lembra que é preciso introduzir a existência em alguns palácios contemporâneos que afetam saber (assim como afetam o saber). Escreve ele: “É nisso que me faz pensar a Sorbonne quando atravesso essa honorável instituição: verdadeira fortaleza vazia. Vazia de vida e pensamento!”
Dedicando seu trabalho ao pai Georges Maffesoli, que, como ele assevera, lhe ensinou o gosto pela vida e o sentido da fraternidade, Michel expõe de cara as duas raízes de seu pensamento, os dois prazeres a que aludi, o da vida e o do outro, sendo que o da vida, para Maffesoli, parece existir somente se há o prazer do outro. “Estar junto por estar junto; sem finalidade, sem utilidade particular!” Ecoa aí um contraponto de outro grande cérebro francês, Edgar Morin. “Viver por viver”, proclamava Morin. Estar-vivo de Morin é como o estar-junto de Maffesoli: e eu preferiria escrever assim, com hífen, como uma palavra só, para dar ideia da indestrutibilidade destes seres teórico-vitais criados por Morin e Maffesoli.
Um termo de que se vale amiúde Maffesoli é o vocábulo francês “sociétal”, que o tradutor brasileiro transcreve simplesmente “societal”. Maffesoli o usa para diferenciar de “social”, este ligado à razão, societal mais uma formação emocional. Maffesoli sabe que está usando uma palavra disseminada no francês atual e mostra que conhece os perigos de sua ambígua polissemia. “É divertido ver como esse termo societal é agora colocado em todos os molhos. Não se compreende bem sua significação, até mesmo se emprega num sentido errado, ou contrassenso, mas sabe-se que é preciso empregá-lo.” Curiosamente o realizador de filmes Jean-Luc Godard, numa entrevista ao Le Monde o ano passado, proferiu suas desconfianças intelectuais para com uma palavra tão vulgarizada. Godard estava falando um pouco duma tribo específica, a tribo cinematográfica. Divagava Godard: “C’est un petit monde. Ce n’est pas un individu seul, c’est une cellule vivante de société… Voilà! Si l’on faisait une métaphore, je n’aime pas tellement le mot sociétal qu’on emploie ajourd’hui, ce serait la naissance, l’adolescence, puis la mort d’un film”.
Societal, tribo. Somente a originalidade tensa de um criador intelectual como Maffesoli lograria transformar os lugares-comuns verbais num pensamento original. Homo eroticus é um convite à vibração do leitor.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br