Maffesoli: Recriando o Pensamento

Com O tesouro escondido: carta aberta aos franco-macons e a outros Michel Maffesoli volta a mostrar seu engenho em reinventar o mundo ao escrever

18/03/2020 14:01 Por Eron Duarte Fagundes
Maffesoli: Recriando o Pensamento

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No começo de A transformação do político (1992) o sociólogo francês Michel Maffesoli dá o rumo da primeira frase: “Inventa-se um mundo cada vez que se escreve.” No opúsculo Apocalipse: opinião pública e opinião publicada (2010) outra frase inicial carregada de perplexidade e corte: “A confusão das palavras acaba sempre acarretando a das coisas.”

Com O tesouro escondido: carta aberta aos franco-maçons e a outros (Le trésor caché: lettre ouverte aux franc-maçons et à quelques autres; 2015) Maffesoli volta a mostrar seu engenho em reinventar o mundo ao escrever, ainda que as palavras possam levar confusão às coisas, que no caso são as ideias, um universo muito particular e emaranhado que se chama noosfera; o círculo de pensamentos de Maffesoli, sua noção do fim da prepotência intelectual (externada de maneira clara e ampla em O conformismo dos intelectuais, 2013), sua visão de mundo pós-moderna em que todos os afetos são comungados (algo que está neste cume de sua arte de pensar que é Homo eroticus: comunhões emocionais, 2012), preenche as páginas de seu novo livro, mas se recria, trazendo para a cena um corpo social que parecerá estranho aos que desconhecem esta sociedade que se livra “de todas as lucubrações subalternas” e onde é “o esotérico que permite que haja o exotérico”: a franco-maçonaria.

Quem tem afinidades com a literatura, lembrará os longos e impressionantes trechos do romance Guerra e paz (1869), em que o russo Leon Tolstoi mergulha seu texto no universo maçônico, visto de um ponto um pouco messiânico e agudamente místico. Isto nasce muito da natureza russa exaltada de Tolstoi. Mas o substrato desta visão de Tolstoi não deixa de ser o germe daquilo que Maffesoli expõe como as essências da maçonaria: a fraternidade, o gesto irmanado. Fugindo ao lugar-comum da pieguice que o desgaste do termo pode trazer para o leitor de hoje, Maffesoli vai especificando, fragmentando e reunindo, o conceito, que no fundo vem a calhar nos braços das teorias sociológicas que o pensador francês defende há décadas. “Elaboro a hipótese de que a comunidade dos irmãos, esta grande temática da fraternidade, na sabedoria maçônica, é a maneira de exprimir esse mecanismo de religação, física e espiritual, graças ao qual se persegue, de maneira obstinada, a construção do templo.” Mais: a alteridade é que nos cria, reafirma Maffesoli; somos pelo outro. O narcisismo pós-moderno, acelerado pelas tecnologias, deixou o individualismo para trás; agregamo-nos. Daí este signo trazido inesperadamente por Maffesoli, o franco-maçom, com seu cheiro de coisa antiga, faz seu sentido ao materializar num grupo o pensamento do viver-junto; o edifício sociológico novamente trazido por Maffesoli quer livrar-se dos “fardos sociológicos” e faz da franco-maçonaria um surpreendente ar novo. Não se trata de ideia gratuita. Não estamos diante do velho ou clássico brilho intelectual do século XX. Talvez não seja propriamente uma invenção de um mundo pelas palavras; talvez devamos apostar que ali está o surgimento em palavras de um mundo existente em que o observador inventa as palavras, que podem ser uma espécie de mundo —transfiguração; pela escrita.

Pensador dinâmico, Maffesoli rejeita reflexionar sobre o mundo como uma carta fechada: o mundo como deve ser dos moralistas; ele prefere abrir seu pensamento para o mundo que é, este mundo pitagórico da “harmonia dos contrários”; esta sombra metafísica do sábio grego Pitágoras influenciou, direta ou indiretamente, muitas visões de mundo, incluindo-se aquela de Gilberto Freyre sobre a formação brasileira, resumida no penúltimo parágrafo do capítulo I de Casa grande & senzala (1933) como “um processo de equilíbrio de antagonismos”. Ainda que haja riscos nesta atitude: em Pitágoras, em Freyre, em Maffesoli. O primeiro capítulo de O tesouro escondido trata do pensamento livre. Despe-se então a ciência social, ou o que quer que seja o conjunto de análises do social, das amarras. Propõe-se uma visão de coisas em que saibamos ver estas coisas sem interferências morais de natureza condenatória. Esta maneira de encarar a análise social não deve ser confundida com conformar-se às situações ásperas e desagradáveis, ou uma acomodação facílima ao status quo das épocas. Significa, dialeticamente, saber observar-nos e aos outros para ver este “nascer-com as coisas, nascer-com todos aqueles que participam desta busca do Graal”. Nesta navegação em que a essência está na preposição “com” a sabedoria está em desvendar o que está na expressão “inventar o segredo da vida”, uma invenção que já não tem como resumir-se ao individual e que só pode surgir da fraternidade autêntica, aquela que constrói a ligação entre irmãos, irmãos não no sentido sanguíneo ou então piedoso (por pai ou por Pai), mas numa forma de ver proximidades estéticas e espirituais entre os indivíduos e seus interesses. Como esta ponte em que se tenta ligar o que vai no texto que aqui se escreve àquilo que Maffesoli dá a ler em seu livro.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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