Meu Erro com Cl

Srgio Jockymann foi bem recebido pelo pblico e por boa parte dos analistas no lanamento de Cl Dias & Noites

19/06/2015 12:52 Por Eron Duarte Fagundes
Meu Erro com Clô

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Sérgio Jockymann, jornalista e escritor gaúcho natural de Palmeira das Missões, fez sua fama básica entre nós por suas crônicas em jornais e por seus comentários radiofônicos. A maciez de sua irônica visão de mundo era materializada numa voz que casava admiravelmente com a agudeza de suas observações. Ele também escreveu para teatro. E nas décadas de 60 e 70 do século passado aventurou-se por escrever algumas telenovelas, o que lhe valeu uma certa fama nacional. No fim dos anos 80 Jockymann estava entre os escombros dos falidos da Caldas Júnior; ele não sobreviveu aos escombros nem topou seu lugar no jornalismo que sobreveio por aqui nos anos seguintes. Caiu no ostracismo, que é a expressão que se usa para os enterrados em vida: se teria sua inteligência para as coisas culturais e sociais tornado anacrônica? No início dos anos 2000 se poderiam ler as crônicas dele num jornal do Vale dos Sinos: quem ali deitasse os olhos, descobria que Jockymann permanecia imbatível como cronista. Por que, então, o impiedoso ostracismo?

Voltando no tempo. Em 1982, nas páginas diárias do jornal Folha da Tarde, Jockymann publicaria capítulos de um folhetim intitulado Clô Dias & Noites. Na sequência o folhetim foi acolhido em livro, dando no romanção Clô Dias & Noites |(1982). Lançado na Feira do Livro daquele ano, o romance fez seu sucesso. O Jockymann cronista e radialista estava no auge: o romancista foi bem recebido pelo público e por boa parte dos analistas. Em Clô Dias & Noites Jockymann traça a saga de uma mulher que se fez mulher nos anos 60 e cruzou pelo mundo porto-alegrense até o fim dos anos 70 dentro da narrativa, expondo os conflitos morais que ela teve com os homens de sua vida, desde o marido, passando pelo sorrateiro primeiro amante numa sessão de cinema, empilhando crápulas onde se incluem velhos milionários lúbricos e bonitões amorais, tudo visto e vivenciado por uma sociedade hesitante entre as mutações e o arcaísmo de conduta. Clô, a protagonista de Jockymann, é incompreendida praticamente por todos: o pai, a mãe, o irmão, os homens com os quais se deita e finalmente os filhos, um rapaz e uma moça. Nenhuma personagem escapa ao machismo característico da época. Em 1982 este próprio comentarista não entendia aqueles entrechos reiterativos da vida de Clô. Copio aqui o parágrafo final dum texto que publiquei em jornal em 24.11.82, texto no qual se fazia um apanhado da literatura gaúcha de então; neste parágrafo está a suma de meu erro com Clô (ou seja, o leitor que fui era mais um homem em quem  ela não podia confiar...): “Entre as decepções, uma deve ser citada, porque é a mais badalada: Clô Dias & Noites, de Sérgio Jockymann. Se como cronista Jockymann revela argúcia e observação, como romancista ele é um desastre: sua noveleta é um esboço conformista, superficial e repetitivo, em mais de 400 páginas, da situação da mulher contemporânea.” Passados mais de trinta anos, vou confessar um erro estrutural de minha análise: li os pedaços soltos num jornal, não me dispus a reler o romanção, daí a escorregadela crítica. Um romance não são suas situações individuais, é o conjunto narrativo. Há romances que têm páginas brilhantes e no entanto fazem ruir a narrativa pelos liames desajustados entre as partes. Há outros que se enlameiam nos clichês da vida (costuma-se dizer que o romance, ao contrário da poesia, é tecido mesmo de muitos clichês) e, vai-se ver, têm um sopro narrativo que pouco a pouco retira o estado de clichê pela leitura continuada. Relendo agora, inteiriço, Clô Dias & Noites, com o narrador articulando e rearticulando a linguagem coloquial tão ao gosto de Jockymann, a insistente perspicácia do romancista em evidenciar os percalços da mulher na sociedade dos machos de sempre, pega o leitor de cabo a rabo. Sem desdouro, pode-se dizer que a experiência de Jockymann nas telenovelas o ajudou a compor o emocional de seu romance em muitos aspectos. Nada errado: os esquemas folhetinescos duma telenovela e da literatura propriamente podem aparentar-se. Se Honoré de Balzac tivesse de ganhar a vida partir da segunda metade do século XX, provavelmente escreveria telenovelas ou talvez roteiros de filme. Em Clô Dias & Noites estes processos telenovelescos inseridos por Jockymann não prejudicam sua elevação literária: ele é criativo mesmo em suas composições mais banais.

Em muitos momentos, lendo passagens narrativas de Clô Dias & Noites, parece estarmos ouvindo a voz mansamente irônica de Sérgio Jockymann que nos vinha pelo rádio. Um dia destes, reencontrando uma amiga de minha geração, ela ironizou seu espanto diante da incógnita que era para um determinado jovem o referencial cultural que nos foi Jockymann, especialmente o homem que falava na rádio. “E então o luar escorregou mansamente pela copa das árvores e se derramou sobre os imensos botões brancos, que se abriram lenta e voluptuosamente no milagre perfumado das Rosas da Noite. Fazia 23 anos que Clô tinha nascido, numa madrugadas encantada como aquela. E tinha já dezenove anos”. Quer dizer, parece que foi ontem que Jockymann nos falava ao ouvido pela rádio.

Também um retrato dos movimentos sociais e políticos na sociedade brasileira entre as décadas de 60 e 70, vistos pelos olhos duma mulher, Clô Dias & Noites é igualmente um apanhado de observações antropológicas sobre a vida das diversas classes sociais que habitavam uma capital de província como Porto Alegre nestes mesmos anos. Significa afirmar que estamos diante de algo que se expande para além das histórias de desamores e incompreensões da personagem principal; o que à primeira vista parecia ser só o que interessava, a trajetória duma mulher, é apenas o ponto de partida. Na verdade, esta história da mulher é a essência óssea que possui em torno outros recheios fundamentais; entre estes recheios a linguagem muito particular de Jockymann, em que a afeição pelas expressões do cotidiano não o impedem de criar sua própria sintaxe e vocabulário. 1982 já vai longe, mas é possível ouvir os murmúrios do ano lendo o romance de Jockymann: até o rio que emana de suas páginas é um rio de época. De qualquer maneira, este comentarista precisava exorcizar os pecados de seu machismo reparando seu erro com Clô. Talvez (arrisco dizer) o próprio Jockymann tenha escrito o livro para exorcizar o seu: o seu machismo. E se poderia dedicar o romance de Jockymann a suas cinco filhas: em nome dele, postumamente, uma dedicatória dos leitores.

É bem verdade que o final do romance hesita entre o amargor e as soluções dramáticas conformistas, ao modo das telenovelas, indicando a Clô as possibilidades do amor de um determinado homem. E também as recomposições das relações de Clô com a filha se encaminham um pouco para uma arrumação artificiosa. Mas são senões menores dentro dum romance cujo fascínio feminista explode em cada capítulo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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