O Amor a Velhice
O comeco das confissoes amorosas em Carta a D. Historia dum Amor de Andre Gorz, perturbador
André Gorz foi um pensador nascido na Áustria cuja vida intelectual se passou toda na França. Casado com sua amada Dorine desde muito jovem e vendo-a na velhice definhar a ponto de suspeitar que teria de sobreviver a ela, ele planejou o suicídio de ambos em 22 de setembro de 2007. Foi um choque para o mundo intelectual deste início de milênio. Boa parte das explicações de seu gesto (explicações sempre irracionais, é verdade, ainda que vindas de um cultor do cérebro) surgiram depois, quando publicaram sua obra testamentária, Carta a D. História dum amor (Lettre à D. Histoire d’un amour; 2007), onde o filósofo extravasou literariamente seu grande amor à mulher, misturando ali evocações passadas deste amor onde a culpa era uma dor que nem a ardência das paixões senis apaziguava.
O começo das confissões amorosas de Gorz é perturbador. “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor de seu corpo contra o meu é capaz de preencher.” É, na verdade, devastador o amor que o homem da inteligência, Gorz, sente por sua Dorine, a D. do título da epístola; um amor devastado pelo tempo, um tempo que é devastado ao mesmo tempo por “um vazio devorador” e “pelo calor do corpo” da velha amada. Marguerite Duras evoca algo parecido no primeiro parágrafo de seu romance O amante (1984), a possibilidade de o amor amar intensamente a velhice do objeto amado. Escreve Duras: “Um dia, eu já estava velha, no saguão dum lugar público, um homem veio em minha direção. Ele se deu a conhecer e me disse: ‘Eu conhecia você desde sempre. Todo o mundo diz que você era bela quando jovem, eu venho para lhe dizer que de mim eu a acho mais bela agora que quando você era jovem, eu amava menos seu rosto de jovem mulher que esse que você tem agora, devastado.” O adjetivo “devastado” tem um sentido metafísico no texto de Duras: podemos aplicar este sentido às visões de Gorz para uma decrepitude física da amada que o amante teima em não ver. Ama-se a velhice não porque ela seja velhice, mas porque ela é a eternidade e a transcendência. Há um surpreendente aprendizado humano no amor suicida de André e Dorine, transubstanciado nesta carta-suicida que paradoxalmente é uma ode à autenticidade da vida.
No fim de seu discurso de amor, Gorz torna a anotar: “Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca.” Ao reanotar, Gorz aumenta o delírio de sua dor. E acresce a suas evocações um pesadelo dolorido: “À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não queria assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas.” A sentença adiante de Gorz prenuncia o duplo suicídio: “Não desejaríamos sobreviver um à morte do outro.” No fim do livro de Duras, mudando da primeira pessoa inicial para uma terceira pessoa onisciente, a romancista escreve: “Ele lhe dissera que era como antes, que ele a amava ainda, que ele não poderia jamais cessar de amá-la, que ele a amaria até a morte.” Então, após a data final da carta de Gorz, 6 de junho de 2006, as luzes se apagam. Como depois da exibição de um filme: já não há nem mesmo o calor de um corpo para preencher o vazio devorador.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br