Uma Reflexao Sobre A Velhice e a Finitude
Se Memoria de Minhas Putas Tristes plasmou-se como o testamento literario de Garcia Marquez, pode-se dizer que a nudez espiritual do escritor atingiu sua mais objetiva luminosidade
Só a velhice poderia proporcionar ao texto do autor colombiano Gabriel García Márquez uma obra como Memória de minhas putas tristes (2005). Só um homem à beira do fim e um escritor experimentado seria capaz de produzir um retrato tão agudo de um homem velho que ainda quer experimentar os últimos prazeres da vida.
Lembro que, em tempos recentes, o norte-americano Philip Roth esboçou uma outra notável visão de um idoso em A marca humana (2000). García Márquez acrescenta sua contribuição: poucos ficcionistas de hoje têm um estilo de escrever tão único quanto Márquez. E o rigor de escrever transparece em cada suor de página, sem todavia empecer a naturalidade de narrar em que Márquez é mestre inarredável.
A história de Márquez começa com uma frase-padrão: “No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem.” Natural: envelhecemos e queremos rejuvenescer num corpo jovem. Mas o desenvolvimento da narrativa de Márquez está longe de ser carnal: é pura reflexão moral sobre a atração que a juventude exerce sobre a velhice. Temos a impressão de que o esperado defloramento não acontece. O sexo que abunda em Política (2003), de Adam Thirwell, é eliminado de Memória de minhas putas tristes; imaginemos que Márquez se deixasse embalançar pela vontade de expor intimidades, como fez o citado e jovem autor inglês, e o texto colombiano se esticaria para além das amarras duma novela: poderíamos ter outro romance-rio, como em Cem anos de solidão (1967), uma obra tão grandiloquentemente perfeita que para um cérebro normal seria paralisante continuar a escrever depois dela. García Márquez seguiu escrevendo depois de seus “cem anos” e, em seu ocaso, sem perder de vista a intensidade barroca de seu verbo, se foi despojando das sintaxes mais demoradas para quase falar de si mesmo. Se Memória de minhas putas tristes plasmou-se como o testamento literário de García Márquez, pode-se dizer que a nudez espiritual do escritor atingiu sua mais objetiva luminosidade.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br