A Velhice e a Finitude em Garca Mrquez
Nossa pequena homenagem ao grande escritor Gabriel Garcia Marques, que morreu aos 87 anos.
O ficcionista colombiano Gabriel García Márquez faleceu nesta quinta-feira da Semana da Páscoa, 17 de abril de 2014, aos 87 anos de idade, na cidade do México, onde praticamente já agonizava há algum tempo, metido nas sombras da falência de seu próprio cérebro, que um dia rendeu ao mundo algumas das páginas mais brilhantes jamais proporcionadas pela literatura. As anotações que seguem abaixo foram escritas em julho de 2005 e tratam do último trabalho ficcional do grande escritor.
Só a velhice poderia proporcionar ao texto do autor colombiano Gabriel García Márquez uma obra como Memórias de minhas putas tristes (2005). Só um homem à beira do fim e um escritor experimentado seria capaz de produzir um retrato tão agudo de um homem velho que ainda quer experimentar os últimos prazeres da vida.
Lembro que, em tempos recentes, o norte-americano Philip Roth esboçou uma outra notável visão de um idoso em A marca humana (2000). García Márquez acrescenta sua contribuição: poucos ficcionistas de hoje tem um estilo de escrever tão único quanto Márquez. E o rigor de escrever transparece em cada suor de página, sem todavia empecer a naturalidade de narrar em que Márquez é mestre inarredável.
A história de Márquez começa com uma frase-padrão: “No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”. (Pensemos no sofisticadíssimo francês Marcel Proust e na frase-padrão que abre o poço de memórias de seu “tempo perdido”: “Lontemps, je me suis couché de bonne heure.”). Natural o desejo simples da personagem de Márquez: envelhecemos e queremos rejuvenescer num corpo jovem. Mas o desenvolvimento da narrativa de Márquez está longe de ser carnal, sugestão maliciosa desde o título: é pura reflexão moral sobre a atração que a juventude exerce sobre a velhice. Temos a impressão de que o esperado defloramento não acontece. O sexo que abunda em Política (2003), de Adam Thirlwell, é eliminado de Memórias de minhas putas tristes; imaginemos que Márquez se deixasse embalançar pela vontade de expor intimidades, como fez o citado e jovem autor inglês, e o texto colombiano se esticaria para além das amarras duma novela: poderíamos ter outro romance-rio, como em Cem anos de solidão (1967), uma obra tão grandiloquentemente perfeita que para um cérebro normal seria paralisante continuar a escrever depois dela. García Márquez seguiu escrevendo depois de seus “cem anos” e agora, sem perder de vista a intensidade barroca de seu verbo, se vai despojando das sintaxes mais demoradas para quase falar de si mesmo. Se Memórias de minhas putas tristes servir de testamento literário de García Márquez, pode-se dizer que a nudez espiritual do escritor atingiu sua mais objetiva luminosidade.
Citação: “A única coisa que permaneceu igual foram minhas crônicas no jornal. As novas gerações arremeteram contra elas, como contra uma múmia do passado que devia ser demolida, mas eu as mantive no mesmo tom, sem concessões, contra os ares de renovação. Fui surdo a tudo.” (In “Memórias de minhas putas tristes”).
Vocabulário: Para facilitar o acesso a dois termos inusuais de que me vali no texto, dois registros. “Empecer”, segundo o “Dicionário de Verbos e Regimes” (1940), de Francisco Fernandes, significa “prejudicar, impedir, estorvar”, e Fernandes começa abonando por uma frase de Camões. “Embalançar”, consoante a mesma fonte-livro, é o mesmo que balançar.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br