Cinema, Literatura, Comercio e Arte
O Poder a Gloria (The power and the glory; 1940), um dos mais festejados romances de Graham Greene
Segundo o crítico brasileiro Otto Maria Carpeaux, o escritor inglês Graham Greene apresenta um talento literário eminentemente ótico. Daí a atração que muitos trabalhos de Greene exerceriam sobre os cineastas: aquilo que Carpeaux chama a “condensação visual das coisas.” Não estou muito certo disto, ao menos não vejo em Greene uma capacidade visual maior do que outros mestres da literatura do século XX, como o norte-americano Ernest Hemmingway e o francês Marcel Proust; o francês Honoré de Balzac, que é muito anterior ao cinema, me parece até bem mais visual que Greene. O que há de cinematográfico em Greene são algumas coisas mais simples e perceptíveis: o texto é direto e transparente, os diálogos fluem imperceptivelmente, tudo é muito descomplicado em Greene e isto facilita o trabalho do cinema comercial.
Greene, ainda apud Carpeaux, dividia seus livros entre novels (os romances sérios, de intenções literárias) e entertainments (diversões, tramas policiais inconseqüentes). Isto dava a medida das indecisões de Greene, que foi na verdade o hibridismo de toda uma geração de autores intermediários do século XX; hesitavam entre ser um autor e ser um despejador de livros, entre o comércio e a arte. Nesta indecisão Greene se encontra com a própria gênese do cinema, que é uma indústria em sua base que aspira a ser uma arte em sua ponta: esta identidade talvez tenha aproximado Greene do cinema.
O poder a glória (The power and the glory; 1940) é um dos mais festejados romances de Greene. E a naturalidade de sua arte se exibe aqui com uma simplicidade que muitos podem confundir com o entretenimento estético na definição provocativa e engenhosa do próprio autor. Mas Greene, longe de propor uma narrativa de ansiedade formal (o suspense comercial), vai em busca de uma agenda metafísica (reflexão seria um termo talvez pesado para quem está mais na terra que as elevações do alemão Thomas Mann) que explique a situação do homem no mundo. No caso, trata-se de um padre de comportamento fora de padrões que é perseguido no interior do México em nome duma moral oficial; mas a moral do livro de Greene foge ao oficialismo e envereda por uma provocação ética bastante além daquilo que suas linhas aparentes indicam. Católico, artista, com inclinações para a literatura comercial que ele depura, Greene desmistifica a ingenuidade religiosa, põe vida na religião, humaniza as questões da Igreja; pode ser que o estilo e a temática de Greene possam aqui e ali ter laivos anacrônicos, mas sua transcendência é eterna.
Eis que dou com um texto que talvez justifique a tese de Carpeaux (que combati no início deste artigo) sobre a inclinação cinematográfica de Greene. O visual em palavras, como se fossem marcações para um roteiro de filme. “Casa: esta era uma palavra que se usava para significar quatro paredes atrás das quais se dormia. Nunca houvera uma casa. Atravessaram a pequena praça esturricada, onde o falecido general ia ficando verde sob a umidade e onde barracas de água mineral erguiam-se debaixo das palmeiras. Casa era com um cartão-postal no alto de uma pilha de outros cartões-postais; embaralhe os cartões e você terá Notingham, uma terra natal em Metroland, um interlúdio em Southend.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br