A Literatura e os Mecanismos da Mente
A arte da palavra em Juremir Machado da Silva capta os mecanismos da mente
Para meu amigo Tuio Becker, jornalista e crítico de cinema, que viveu os anos finais de sua vida (2001-2008) sob a progressão da doença de Alzheimer.
(Minha memória se arrima em dois pilares: minhas leituras e meus escritos. Ela é feita de alguns extratos: imagens que vi em filmes, imagens que topei na vida em família, entre amigos, no trabalho, por aí afora. A memória se desparafusa amiúde. Esforço-me por costurá-la. Estou às vezes entre a angústia de lembrar tantas coisas e o medo de as esquecer. O livro de que trato a seguir toca em alguns pontos destes meus nervos.)
A Literatura e os Mecanismos da Mente
A arte da palavra em Juremir Machado da Silva capta os mecanismos da mente. A primeira frase de Memória no esquecimento (2021), seu novo romance, dá a senha para entrar em seu assunto, as confusões do cérebro humano em determinado estado: “O que é mais doloroso: não conseguir esquecer ou não conseguir lembrar?” Escritor e jornalista, Juremir, desde as ambições mais deslumbradas da juventude em Cai a noite sobre Palomas (1995), passou, a partir de determinado ponto de seus textos, a buscar o despojamento, exercitado em suas crônicas diárias para jornal; em seu romance anterior, Acordei negro (2019), muito desta procura se materializava no texto; Memória no esquecimento, apesar do complexo jogo dos desequilíbrios psicológicos da personagem central, vai por esse caminho. No entanto, em Juremir, despojamento jornalístico em momento algum permite ao escritor abdicar da criatividade de seu verbo; no fundo é neste jogo dialético entre as formas simples e um barroquismo inato que se mantém de pé a literatura de Juremir.
Numa das orações iniciais do romance mais transbordante de Juremir, Fronteiras (1999), o narrador anota: “Extasiado, senti-me levitar.” É um pouco assim a impressão do leitor diante de certas passagens da literatura de Juremir. O processo atual da escrita do autor é dar peso concreto a este ato de levitar. A personagem com a mente à deriva em Memória no esquecimento também levita; mas é uma realidade diante das outras personagens e do próprio leitor que pode evocar as realidades espelhadas que já deparou do lado de fora da literatura.
Memória no esquecimento está dividido em quatro partes em que as formas de olhar, ou os pontos de vista, se cruzam, se intercalam, se entrecruzam, construindo um complexo jogo de vozes narrativas. A descrição duma doença mental, no romance, oscila entre alguma aspereza clínica e a margem de liberdade poética que a ficção pode dar. O resultado é a densidade psicológica que amiúde espanta pelo grau a que chega diante da crueza da vida. “como um louco que surtou e não segura mais seu intestino, sua bexiga e seus ressentimentos, misturando urina, fezes e lembranças numa pasta na qual já não sei o que dói mais e o que cheira pior.”
Nos “olhos cinzas de fuligem. Parados.” a paisagem íntima do romance se desenrola, como no vagão do trem que cruza os cenários, ante o olhar fluido da personagem. O vagão que vai passando e o tempo que desaparece transformando as coisas em passado. O passado com o qual o homem doente tem contatos estranhos, entre o “excesso de uma lembrança” (uma “golfada de vômito”) e o “esquecimento”. O vagão passa: os sonhos-lembranças se sucedem. Mas: “Volto a mim. Estou no trem.” A bordo da realidade primeira, objetiva, a tentativa de reconstrução. “Seria um observador sem nome e sem biografia, à margem do protagonista. É o que sou. Uma ausência. A narrativa, contudo, foi me exigindo uma participação que nunca desejei e me constrange.”
“Se me faço entender”, direi que Memória no esquecimento é a depuração extrema do alvo de despojamento de estilo do romancista de delírios muitas vezes barrocos que é Juremir. Depois de navegações variadas por anotações clínicas, jogos narrativos, complexidades verbais, tudo muito trabalhado nos cruzamentos que vão ocorrendo, a última imagem é o grito final dum menino ruivo: “—Tem uma pandorga indo embora com uma mulher lá no rio." Um pouco como se a pandorga, quase uma imagem de infância ou isto mesmo, fosse um signo para tantas coisas dentro das intenções (algumas objetivas, outras secretas) dentro de Memória no esquecimento.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br