O Pensador das Letras Brasileiras
Álvaro é o espírito com cuja forma de meditar sobre a literatura e mesmo a arte de maneira geral mais me identifico
Álvaro Lins nasceu em 14 de dezembro de 1912, em Caruaru, na região do agreste, à beira do sertão, em Pernambuco. Faleceu no Rio de Janeiro em 4 de junho de 1970. Para os padrões de hoje, foram escassos cinquenta e sete anos de vida. Álvaro é o espírito com cuja forma de meditar sobre a literatura e mesmo a arte de maneira geral mais me identifico; ele não tem, em nossos dias, a sobrevivência de Antônio Cândido ou mesmo Otto Maria Carpeaux, seus contemporâneos, mas sua lucidez para analisar os livros (ainda que se possa discordar aqui e ali de algumas posições dele, ainda que em alguns casos sua ética-estética possa parecer envelhecida, ainda que seus julgamentos em alguns casos não tenham sobrevivido aos anos) é notavelmente espantosa: e tudo está vazado numa linguagem muito própria e sempre inventiva na forma como se ligam raciocínio e texto. Tudo isto o leitor de hoje poderia constatar se algum editor se atrevesse a reeditar Os mortos de sobrecasaca (1963). A primeira vez em que este conjunto de estudos literários de Lins se me deparou foi em 1973, eu tinha dezessete anos, chegara havia pouco do interior para a capital, usava enfurnar-me diariamente na Biblioteca Pública do Estado e devorava aquilo como uma descoberta do mundo. Ao reler aqueles ensaios, tantas décadas depois, descubro que quase tudo o que então lera permaneceu dentro de mim esses anos todos, é um dos raros casos em que reler é tornar à primeira leitura; pouca coisa se alterou, a paixão por aqueles conceitos e aquelas orações foi metabolizada ao longo do tempo mas o aprendizado se tornou um clássico de meu patrimônio literário interior.
O capítulo 11 de Os mortos de sobrecasaca é uma das principais meditações de Álvaro naqueles anos longínquos. Concordando-se ou não com a maneira como o crítico enquadra as obras sobre as quais se debruça, é de assombrar a luz intelectual com que ele vê as atividades dos escritores. O título do trecho é: “3 experiências várias: a transbordante, a incompleta e a falhada”. Os romances esmiuçados: A quadragésima porta (1943), de José Geraldo Vieira; Perto do coração selvagem (1943), de Clarice Lispector; e Lições de abismo (1950), de Gustavo Corção. Para Álvaro, José Geraldo transborda (vai além do romance), Clarice é incompleta (fica aquém do gênero a que se entrega) e Corção falha (não faz romance algum). “Fez o Sr. José Geraldo Vieira, com A quadragésima porta, o que se poderia chamar uma experiência do romance total. Movimentou os personagens num plano de universalismo geográfico, desenvolveu com objetividade um longo período de tempo, colocou dentro da ficção problemas ideológicos da ordem da política, da ciência e da arte. O seu êxito não foi completo, porém a experiência ficará como uma etapa na crônica da nossa arte de ficção.” “Já se disse da arte do romance que é um espelho, uma imagem da vida. No moderno romance psicológico, o espelho está partido, e a arte do romancista consiste em dar unidade aos fragmentos. O romance da Srª Clarice Lispector está cheio de imagens, mas sem unidade íntima.” “Neste sentido, poderemos fazer uma experiência que será decisiva contra o romancista: os trechos mais bem acabados de Lições de abismo produzem melhor efeito lidos isolados do que no conjunto. Abra-se, ao acaso, Lições de abismo, e leia-se uma dessas páginas: a impressão é positiva. Lido o livro todo, fechado o volume, é negativa a impressão que nos fica da obra em conjunto. Faça-se, porém, a mesma experiência com um verdadeiro romance: muitas e muitas de suas páginas, se lidas isoladamente, não significam nada; todas elas se valorizam, entretanto, em quadro completo, o conjunto íntegro, como obra de ficção.” Álvaro tem, pois, um cérebro literário arrepiante em sua pontaria.
Soube ver, sem rebuços, as limitações de seus contemporâneos, como Erico Verissimo ou Jorge Amado, ainda que os admiradores de hoje destes escritores possam achar exagerado o tom crítico. “Sendo certo, porém, que o Sr. Erico Verissimo possui as qualidades do romancista, a consciência do seu ofício, o senso da literatura —vale a pena acentuar que deve haver uma circunstância acidental perturbando a construção da sua obra. Esta circunstância estou certo que não errarei afirmando que é o sucesso público.” “O estilo do Sr. Jorge Amado —tanto o direto como o indireto— ainda tem muito de inorgânico e desarticulado. Há uma grande desproporção entre o seu poderoso talento de romancista e os seus fracos recursos de escritor.” Sua admiração por Lúcio Cardoso, em A luz no subsolo (1936) especialmente, topa alguns óbices: “O que me impede de julgar definitiva e completa qualquer uma destas últimas obras do Sr. Lúcio Cardoso não é a circunstância de se basearem no excepcional e no extraordinário. É que não são ainda bastante excepcionais e bastante extraordinárias, como seria de esperar e como esperamos que os seus outros romances se tornem.”
Outro excerto luminoso de Álvaro é aquele que fez sobre a obra de Graciliano Ramos, “Valores e misérias das vidas secas”, escrito em 1947. Como Graciliano é um autor merecidamente agraciado pela posteridade, este texto de Álvaro é hoje o mais conhecido de seus trabalhos. “O enredo de Angústia não tem importância ou significação, nem é sobre o enredo que repousa o valor deste romance, como de qualquer outro do Sr. Graciliano Ramos.” “Por trás da aparente desordem, a mão do romancista reúne, dispõe, compõe com a mestria de um demiurgo.”
E num determinado momento de Os mortos de sobrecasaca o autor se arvora em crítico teatral, meditando nas peças de Nelson Rodrigues, analisando o texto teatral como um gênero da literatura ao mesmo tempo em que evoca algumas encenações das peças que viu em sua época e esboçando uma análise teatral específica ainda incipiente. É verdade que a aparelhagem crítica de que se valia Álvaro como pensador teatral era de fato limitada naqueles anos. No entanto, é de reconhecer a sempre presente lucidez de seu raciocínio e a força de sua linguagem crítica para iluminar o universo rodrigueano.
Os mortos de sobrecasaca de Álvaro estão aí, na sala literária: para desenterrá-los, basta a paixão pela literatura e pelo raciocínio nas letras.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br