A Mãe, A Puta e O Puto Sem Mãe

Conheça o cinema do polêmico e marginal Jean Eustache e a sua influência

29/01/2013 22:27 Por Eron Fagundes
A Mãe, A Puta e O Puto Sem Mãe

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O francês Jean Eustache é um cineasta desgarrado, um galho no campo à margem de qualquer árvore cinematográfica. No Festival de Cinema de Cannes de 1973 ele provocou um escândalo com A mãe e a puta (La maman et la putain; 1973), um escândalo ao mesmo tempo esteticamente moral e moralmente estético, um feito escandaloso especialmente materializado no monólogo quase ao final da personagem de Françoise Lebrun, um vomitório verbal filmado num longo e tenso plano fixo em que uma mulher de vida livre (uma puta para os padrões da época) vomita seu desejo de ser mãe, num texto tão desarticulado quando devorador. Depois Eustache foi lentamente esquecido; esqueceram-se os avanços nas relações entre a palavra e a imagem que ele acresceu depois de A chinesa (1967), do franco-suíço Jean-Luc Godard, esqueceu-se a provocativa guinada à margem que o desenvolvimento de A mãe e a puta trouxe para o cinema existencialista depois dos italianos Michelangelo Antonioni e Valerio Zurlini com os deslocamentos exasperantes das personagens. No caso do Brasil, Eustache permaneceu inédito, e nossos melhores pensadores passaram ao largo das possíveis discussões que o cinema de Eustache poderia trazer; é bem verdade que os anos 70 por aqui não permitiriam a chegada de tal filme, a censura dos governos militares estava atenta, mas como então filmes que alguns viam em Montevidéu como O último tango em Paris (172), do italiano Bernardo Bertolucci, e Laranja mecânica (1971), do americano Stanley Kubrick, movimentaram nossas  querelas, discutidos pelos que os tinham visto e os que não os tinham visto? Os anos de chumbo brasileiros explicam uma parte do silêncio-Eustache por aqui, mas não tudo e não o principal. O principal motivo da ausência de Eustache é a síndrome do galho solto: nem o sueco Ingmar Bergman, nem o italiano Michelangelo Antonioni, nem o francês Robert Bresson padecem disto. Uma obra como A mãe e a puta, agora lançada em dvd entre nós, revela a condição de galho do cinema de Eustache: não parece ter nascido propriamente de nenhuma árvore. Em 1981, pouco antes de completar 43 anos, Eustache suicidou-se; estava, pois, pronta a lápide de um cinema talvez demasiadamente avançado (moral e esteticamente) para seu tempo, e o tempo, uma das funções narrativas do plano cinematográfico, capturando um pouco da herança do escritor Marcel Proust para o cinema, tardaria a passar para a ressurreição  de Eustache, um filósofo cinematográfico apropriado para este princípio do século XXI.

Há algumas personagens suicidas referidas ao longo de A mãe e a puta. São mulheres. Algumas mulheres aludidas pela personagem central, um homem, vivido por Jean-Pierre Léaud, que teria tido relacionamentos com estas suicidas. Léaud depura notavelmente seu modelo interpretativo extraído de sua vivência sob o francês François Truffaut. Demais, o triângulo central (Alexandre/Léaud, um ser que parece importado da “náusea” sartreana; mais Marie, que vive com Alexandre, e Veronika, a “puta” com que ele se relaciona, para chegar ao sexo a três de quase ao final) traz a marca suicida em suas andanças. A mãe e a puta é mesmo o filme rodado por alguém próximo do suicídio. É o filme de um puto sem mãe, o cineasta sem uma árvore, eis a maldição de Eustache, o que mergulhou seu cinema no esquecimento e sua vida numa noite trevosa que culminou precocemente em 1981.

A mãe e a puta exibe a irreverência própria de Eustache, talvez única na história do cinema, mas também sua cultura, seu conhecimento dos meios artísticos, seu francesismo à Raymond Radiguet. A exibição cultural em A mãe e a puta tem função e proporção cinematográficas; nunca desorganiza a narrativa, serve a localizar a alma das personagens. Numa cena Léaud está lendo um jornal; na página que se opõe ao olho da personagem, a página que está virada para o espectador, uma manchete que aparece em pelo menos dois planos: “Viva Leone! Viva o western!” Além do cinema, a literatura. Georges Bernanos é citado num diálogo, e com Bernanos vem o cineasta Robert Bresson, oculto ali, é claro. Cinema e literatura numa mesma referência, a personagem refere o filme retirado de William Wilson; sem aludir diretamente, se está falando do conto de Edgar Allan Poe e do episódio do filme Histórias extraordinárias (1969) dirigido pelo francês Louis Malle. Não poderia faltar o pai do existencialismo, o francês Jean-Paul Sartre; as criaturas num bar  referem a presença de Sartre numa mesa próxima, é claro que Eustache não filma um plano com Sartre, o que se diz é que o lobo existencialista está a desfilar seu maoísmo pelos bares franceses enquanto exala sua embriaguez. Da literatura e do cinema para a música; alguns clássicos, é verdade, mas especialmente a voz de Edith Piaf: numa determinada cena, Marie, a personagem de Bernadette Lafont, encontra-se na cama, enquanto seu homem e a amante dele saem do quarto, põe-se a escutar “Os amantes de Paris”, ela tapa os olhos com as mãos, a voz de Piaf inunda o longo plano fixo, o cinema torna-se a canção, invade-se de sons.

Mas o grande instante do filme, seu plano fixo mais perturbador é o monólogo da puta-mãe. Ela despeja-se e despeja seus desejos na tela fixa. Françoise Lebrun fala enquanto o plano divaga fixamente, os olhos da atriz estão semicerrados enquanto tergiversa mas de quando em quando estes olhos se entreabrem para espiar o comportamento do espectador. Talvez neste olhar discreto para o espectador esteja a explicação de um filme como A mãe e a puta: que observador é este para tal filme?

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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